terça-feira, 21 de abril de 2015

“QUE COISA SÃO AS NUVENS”

1- “Que coisa são as nuvens” será um enunciado de um enigma que se vai decifrar ou será uma pergunta? Eu inclino-me para a última hipótese, pela simples razão de que essa é uma pergunta que me começou a ocorrer com frequência, assim que ultrapassei aquilo a que a curiosa Cloud Apreciation Society, citada por JTM, chama “a ditadura do céu azul”. De facto, tudo tem um tempo, na vida: vivemos todos os anos de juventude real e o de juventude imaginada apenas concentrados no azul – que temos como sinal infalível de beleza, alegria, felicidade. Mas chega uma altura em que começamos a prestar atenção aos tons pardos e mais indefiníveis do cinzento – de que as nuvens são o mais próximo e o mais visível exemplo. Talvez o cinzento antecipe o branco final e definitivo – o insondável branco que tudo apagará para sempre.

Com a idade, fui começando a prestar atenção às nuvens. Comecei a vê-las não apenas como um sinal de chuva, de mau tempo, de férias ou fins-de-semana estragados. Mas também como um sinal de água, de vapor, de leveza, de imponderável: um sinal de vida e da fragilidade da vida.
Dei por mim a 10.000 metros de altitude ou num dia de verão, deitado no sol da areia da praia, de olhos fechados, a contemplar as nuvens e perguntar-me isso mesmo: “que coisa são as nuvens?” Li num romance de um autor francês que há várias espécies e classificações de nuvens e que as suas formas, a sua densidade e o seu deslizar nunca são sem sentido: apenas não estamos preparados para o decifrar. JTM diz que “precisamos do socorro das nuvens, uma turbulência ou uma ruptura de significado na representação habitual do mundo”.De facto, elas são uma ruptura, uma turbulência: no mar, prenunciam o mau tempo a seguir à bonança e metem medo; no ar, quando vamos no ventre de um avião e as vemos avançar sobre nós, compreendemos como é frágil a nossa fragilidade comparada com a delas; mas, vistas de terra, com os pés bem assentes na terra, as nuvens, se bem que pareçam distraídas, jamais são inconsequentes. Basta pensar o que seria a pintura sem elas, o que seriam os pôr-do-sol sem elas, o que seria o céu despido delas.

Não acho, pois, que a escolha, por parte do JTM, deste título para este seu livro de crónicas, seja um acto de diletantismo estético ou um exercício de decifração que por si mesmo convoque a leitura dele. É tão pouco vazio de significado o título quanto as nuvens o são.

Acho até que, literariamente, o JTM vive dentro de uma nuvem. A sua escrita é uma espécie de nuvem – uma que ainda não foi classificada – e de onde ele, sem de modo algum estar desligado do mundo (olha quem!), vê o mundo de mais alto e, portanto, vê mais longe, como se vê quando se observa as coisas de cima. Repito que estamos perante uma pessoa e uma escrita intrinsecamente ligado às coisas terrenas, palpáveis – “incarnado” nelas, como ele diz aspirar a ser e a ser visto. Mas é uma escrita que plana acima dessas coisas, que são o pão e o sal de que quase todos os outros que escrevem se alimentam em exclusivo. A sua escrita não tem, a meu ver, a consistência sólida, evidente e indesmentível das coisas terrenas; mas também não tem a absoluta e imperfeita leveza das coisas etéreas. É uma espécie de cortina entre essas duas dimensões, uma espuma suspensa entre territórios distintos, embora confluentes, uma massa líquida e translúcida (aquilo que transcende a lucidez), e certamente formada por pensamentos dispersos, viagens sem rumo, lugares de abandono sem regresso, ilhas abandonadas, dúvidas sem resposta, seiva, ar respirado, lágrimas. Uma nuvem, pois.

O JTM é, em minha opinião, o melhor colunista do Expresso – isto é, aquele que mais vale a pena ler.
O que mais me seduz na sua leitura semanal não é a exuberante demonstração de uma cultura tão vasta e tão sequiosa que não há nada que a não atraia e de que ele não se ocupe: a música, a pintura, a fotografia a literatura, o cinema, a religião. E também não é o seu inteligentíssimo esforço de tornar a cultura, o seu saber e a sua aprendizagem, um objecto de utilidade evidente na compreensão do mundo que nos rodeia e das coisas todas que nos espantam. Não, o que eu mais admiro na sua escrita e no seu pensamento é exactamente esse espanto perante o mundo. A sua capacidade de dar testemunho dele e de nos chamar a atenção para a grandiosidade de tudo, até das coisas aparentemente pequenas. Porque, como ele diz aqui, “sobra sempre vida à história que contamos dela”.

Assim, vamos dar nestas crónicas com dissertações exuberantes de coisas como o bolo de bolacha - o seu preferido – ou o saudoso bolo de arroz – a que chama “uma causa perdida”, sacrificado à “massificação da pastelaria que nos rouba a vida às dentadas”. Ou sobre o significado e a importância do plantio de batata, como manifestação de vida, de continuidade e de resiliência. Ou sobre a transcendência das várias camadas sobrepostas de cor das maçãs pintadas por Cézane. Ou sobre a impossibilidade de encontrar um verdadeiro spaghetti alla amatriciana fora de Itália.
Tal como ele diz acerca de Eugénio de Andrade, também se pode dizer sobre si que “não consentia em distrair-se da responsabilidade que é viver diante de coisas tão elementares como a luz da manhã, os goivos que florescem, o branco da página, o olhar das vítimas ou o olhar do seu gato”.

Sim, é preciso olhar. É preciso olhar ainda, uma e outra vez. É preciso saber olhar – ou, como ele diz, numa associação de ideias particularmente feliz, saber “reparar”. Cito (pag. 89):........

2- A este propósito, aliás, queria dar nota da minha única discordância relativamente a uma característica presente em alguns destes textos. Dá-se o caso de por vezes sentir que é como se o JTM tivesse medo de que os leitores não percebessem a grandiosidade das coisas do mundo, de que fala com deslumbramento. E então, acrescenta à descrição e ao testemunho uma espécie de catálogo explicativo - se assim me permito interpretar. Passa de contador da história, de testemunha do mundo, a guia. Como se as coisas evidentes o não fossem por si mesmas, uma vez simplesmente contadas. Como se a beleza precisasse de ser explicada, a alegria precisasse de ser recomendada, ou o sofrimento precisasse de anestésico, para além da sua brutalidade, pura e simples. Faz-me lembrar a diferença entre Dostoievsky e Tchekov – que eu prefiro largamente. Dostoievsky descreve tudo tão minuciosamente e de cada descrição extrai uma lição e uma moral tão incontestáveis, que não sobra nenhum espaço em branco por preencher, nenhuma liberdade criativa ao leitor: ele dá e recomenda. Tchekov, pelo contrário, descreve apenas, e em substantivos simples, uma estação de comboios na Rússia de então ou uma praia no Mar Negro. E nós, que nunca lá estivemos, adormecemos a imaginar a praia e a estação à medida da nossa imaginação.
O esplendor do  mundo, das coisas do mundo, não precisa de ser explicado. Precisa apenas de ser contado – e essa é a função do escritor – ou precisa de ser pintado, fotografado, filmado, musicado. Permitam-me, a propósito, que chame aqui à colação um escritor que, por acaso, é a minha mãe. Mas que não vem aqui por acaso ou porque eu tenha por dever de ofício citá-la em tudo o que são ocasiões públicas. Pelo contrário: na minha intimidade, não há um dia em que eu não a cite para mim mesmo; mas, em público, é diferente e é penoso. Mas chamo-a aqui porque sei que ela é um dos autores de referência do JTM – um grande poeta reconhece sempre o outro. O Cristo Cigano...
“O caminho da manhã”...

Numa passagem de um destes textos, o JTM fala sobre a amizade e diz uma coisa que eu gostaria de ter sido capaz de dizer de forma tão simples e certeira: “a amizade não só guarda silêncio, como ela é guardada pelo silêncio”. É exactamente o que eu penso: a amizade, como o amor, como todos os grandes sentimentos, precisa do silêncio entre parceiros. Acredito que nenhuma relação que não saiba habitar o silêncio e fazer dele um espaço partilhado e íntimo sobreviverá. Aliás, penso que tudo o que é importante precisa de silêncio – até a música. E a escrita também: há um silêncio entre as palavras, as frases, as páginas de um livro, que o autor tem de ser capaz de criar e o leitor ser capaz de escutar.

3- Aqui chegados, alguns de vocês estarão porventura a indagar-se: “mas afinal, de que trata o livro do JTM?”. É a mais legítima das perguntas, a mais lógica de fazer, nestas ocasiões. Para aqueles que são seus leitores habituais no Expresso, a resposta é desnecessária: elas sabem-na. Mas para os outros, eu - que fui formatado numa escola de jornalismo clássico, em que a todo o tempo temos de ser capazes de fazer o lead de qualquer notícia – não há como fugir a uma resposta. E, pois, mesmo correndo o risco de o próprio autor discordar de mim, eu diria que o lead desta notícia, a razão de ser deste livro, desta reunião de crónicas, é o mais banal e o mais premente de todos: um personagem à procura de um autor, um autor à procura de um sentido... para tudo isto. E isto é a vida: o que vimos, o que reparámos, o que fizemos e o que deixámos de fazer, o que lemos e o que aprendemos, o que ouvimos e o que escutámos, o que foi o nosso percurso, o que fizemos desse extraordinário acaso cósmico que é o de termos sido seres vivos, entre tantos milhões de hipóteses de o não sermos, neste planeta, nesta vida, neste tempo. E, inevitavelmente, a busca de uma resposta à fatal pergunta que sentido fez tudo isto, afinal, se não sabemos para onde vamos, quando o azul passar a cinzento e quando o cinzento passar a branco.

Eu – que definitivamente, segundo creio, e infelizmente – não acredito num outro céu azul à espera dos homens de boa vontade, quero todavia acreditar que ao menos exista o Inferno, para acolher os homens de má vontade, os que, por aqui tendo passado, transformaram vidas alheias num Inferno. Mas não estou, obviamente, certo disso, muito pelo contrário. Mas espero que, de algum modo que muitas vezes não sabemos qual possa ser, haverá, no fim de tudo, uma justiça feita aqui, entre os vivos – quanto mais não seja, quando já nada nos restar do que estarmos definitivamente a sós perante a nossa consciência e o último segundo de lucidez for ocupado a responder à pergunta se a nossa vida fez sentido.


É isso, em minha opinião, que perturba, que ocupa e que gritantemente se impõe na leitura destes textos. Um homem à procura de um sentido para a vida: a dele e a dos outros. É isso que se poderia inferir apenas da leitura de um destes textos, se todos os outros também o não confirmassem. Chama-se o “Elogio das pequenas coisas”, e eu vou ler uma passagem com a qual termino e que li, deslumbrado, enquanto comia umas lapas grelhadas na brasa, com azeite e alho (acho que o JTM, gostará de saber que assim a alegria das pequenas coisas não nos distrai da evidência das grandes): (pág.33).

Este é o texto da apresentação feita por Miguel Sosa Tavares ao livro que reune as crónicas de Tolentino de Mendonça, intitulado "Que coisa são as nuvens" e que, sob sua autorização, publico a pedido de uma comentadora.
É um belo texto que decerto interessará mesmo àqueles que o não ouviram!

HSC

7 comentários:

maria isabel disse...

Belo,belo!!! nada mais a dizer.
Abençoado quem assim escreve,para podermos ler.

Anónimo disse...

É MARAVILHOSO PODER LER O QUE MIGUEL SOUSA TAVARES ESCREVE!

ABENÇOADO SEJA ELE E A SENHORA HELENA SACADURA CABRAL!

ANA ISABEL

Anónimo disse...

Belo texto. Muito interessante. Bem aja quem escreve bem e divulga. É sempre um prazer ler textos bem escritos.
Obrigada por publicar.
Maria M

Virginia disse...

Um pouco longo demais para uma introdução, na minha opinião. Interessante e poético.

Anónimo disse...


Helena
Não, li uma nem duas, um texto assim tem que ser lido e relido, tem que ser bem digerido. Mastigar bem as palavras, saber interpretá-las, " Mágnifico".
Obrigada!

Carla

Anónimo disse...

Texto muito minucioso, belo e eloquente.

Pe Tolentino de Mendonça, tenho para mim,com a minha visão singela, que é um cartógrafo e testemunha do coração humano.
Procuro seguir o que escreve sempre que posso, para orientação do meu "eu"...
Deixo aqui algumas frases suas, que considero padrões e que me ajudaram já, a dar muitas voltas difíceis na vida: -"Gosto da palavra reparar; pois transporta para o ato de ver uma polissemia e uma ética. Reparar introduz-nos por si só numa lentidão, porque aquilo a que alude não é um observar qualquer: é um ver parado, um revisar por ventura mais minucioso do que o mero relance; é uma visão segunda, uma nova oportunidade concedida..."
- "A contemplação começa quando aceitamos que não sabemos ver, que a nossa visão é parcial e pobre, que vemos sempre "como que por espelho e de maneira confusa"...
-"Deslumbra-te com a surpresa dos dias."
-"A fé é uma relação táctil."
-"A semente para frutificar precisa da mão que a atire mais para longe..."

Pe Tolentino é um ser muito especial e invulgar, dotado de elevada sabedoria.
Um forte pilar na nossa cultura.

Quero deixar o meu obrigada pela publicação deste texto.

Fatyly disse...

Imprimi e fui lendo aos poucos pensando em cada mensagem e gostei imenso.