sábado, 22 de agosto de 2020

Saborear a vida

“Não se envelhece para morrer. Envelhece-se para saborear a vida”
Já não me lembro de quem disse esta frase que eu registei. Admito que tenha sido José Tolentino de Mendonça, mas não tenho a certeza. Pensei muitas vezes nela, ao longo destes últimos meses.
Já quando era nova pensava que a vida era para ser saboreada, ou seja, não ficar agarrada a momentos maus e seguir em frente com a esperança de que pelo menos aqueles se não repetissem.
Mas a vida passa tão depressa que de pouco ou nada me lembro que não fosse agradável. Até ao primeiro contacto com a morte, que me levou o avô que eu adorava. Aí houve um embate tão grande que eu só pensava no que me aconteceria se morresse a minha avó. 
Não tive muito tempo para pensar, porque ela morreu três meses depois, com saudades do marido. Aliás desde que ele morrera ela refugiou-se no seu quarto e nunca mais de lá saiu.
Assim, de uma vez só, eu perdia o meu chão, o meu ninho, o amor daqueles com quem fui criada. Anos mais tarde, quando morreu a minha mãe, eu já me tinha feito mulher forte, que sabe que nada na vida é nosso, que tudo pode mudar radicalmente de um momento para o outro e, portanto, numa logica natural, isso havia de acontecer. Mas, entretanto, tinha aprendido, também, que sendo a vida feita de perdas, nós precisamos de nos preparar para elas. 
Foram anos em que percebi que a única solução para envelhecer é saborear bem a vida, seja de que forma for desde que seja aquela que escolhemos e nos torna felizes.
Hoje trabalho, rio, divirto-me e algumas vezes, poucas, choro. Chamo a isto saboreara existência que tenho com tudo aquilo que ainda mantenho.
Esse sabor tem formas muito variadas que vão de ouvir um belo concerto, ao ir comer sardinhas assadas em S. João da Caparica dois dias depois de ter saído do hospital, ou fazer uma “carilada” para um grupo de amigos que poem a mesa e acabam a tirá-la. Só que tudo isto tem de ser, também, acompanhado de alguns silêncios pelo meio, em que careço de estar frente a frente comigo. E foram muitas destas coisas, tão simples, que salvaram os meses de quarentena que no meu caso foram muitos. Na verdade, não se envelhece para morrer. Envelhece-se para dar sabor à vida!

HSC

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

As coisas simples

Nunca fui muito de gostos estilizados e menos ainda de seguir modas mesmo quando o corpo e a idade o permitiriam. Quando tinha patrão andava bem arranjada mas não perdia cinco minutos do meu tempo a escolher "roupas adequadas". Se gostava de um padrão comprava-o em duas cores diferentes e vinha para casa muito satisfeita. Ainda hoje tenho o mesmo modelo de vestido em várias cores - não aprecio roupa cara - e sinto-me "linda" dentro de qualquer delas. Quem me conhece, sabe bem quanto isto é verdade. 
Antes da pandemia, uma casa chinesa de Campo de Ourique era a minha boutique de preferência. Depois, em casa, dava aos modelos um toque singular, usando uma flor, um cinto ou uma écharpe e parecia saída da Chanel...
Este intróito explica a minha admiração pelo que vi no primeiro dia do pós operatório em que saí e que foi sexta feira, oito dias após a segunda operação. A "nova normalidade" obriga-nos a ver coisas que saem fora dela. Numa mesa uma criatura do género feminino abanava os seus interiores por da mesa e outra não tendo conseguido sentar-se pela justeza dos calções , resolveu virar para nós o trazeiro cuja amplitude abafava qualquer outra vista...
Os amigos, que para mim são preciosos, estão sempre atentos às minhas necessidades. Eu andava louca por comer sardinhas assadas e uma mão diligente pegou na minha e levou-me a S. João da Caparica, come-las. Que delícia acompanhadas por sangria vermelha. Senti-me no sétimo céu, embora cansada, porque andar na areia exige um esforço suplementar, no meu caso. E tive coragem de ir até à borda de água molhar os pés... mas com vontade de me atirar à água bem gelada!
No dia seguinte ainda estava um pouco moída, mas tão satisfeita que, à noite, me arrastaram facilmente para um jantar italiano - o que eu gosto desta comida - e de seguida para o concerto do Rodrigo Leão.
Vim para casa feliz. Feliz por ter aguentado o esforço, mas sobretudo por me sentir voltar à minha vida social e cultural de antigamente. Parece pouco, mas para mim foi um verdadeiro toque divino!

HSC

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Oração do Cardeal Tolentino


Debaixo de um amável céu azul, junto à estátua do Cristo Redentor, na “Cidade Maravilhosa”, o arcebispo do Rio de Janeiro, cardeal Orani Tempesta, presidiu à missa “Para cada vida”, na qual foi difundido um vídeo com um poema-oração do cardeal José Tolentino Mendonça.
O objetivo do vídeo é levar «confiança e esperança» a um tempo «tão sofrido», mas que possibilita muitas aprendizagens, explicou o arcebispo.
Esta é a prece a Deus para que livre a humanidade da pandemia, e de “todos os outros males que se escondem dentro dela”  lida pelo ator brasileiro Tony Ramos.

«Senhor, 
livra-nos, Senhor, deste vírus,
mas também de todos os outros que se escondem dentro dele.

Livra-nos do vírus do pânico disseminado, 
sim, porque em vez de construir sabedoria,
ele nos atira, desamparados, para o labirinto da angústia.

Livra-nos do vírus do desânimo 
que nos retira a fortaleza de alma
com que melhor se enfrentam as horas difíceis.

Livra-nos, Senhor,
por favor, livra-nos do vírus do pessimismo, 
pois não nos deixa ver que, 
se nós não pudermos abrir a porta, 
nós temos ainda possibilidade de abrir janelas.

Livra-nos do vírus do isolamento interior que desagrega, 
pois o mundo continua a ser uma comunidade viva, Senhor.

Livra-nos do vírus do individualismo que faz crescer as muralhas, 
mas explode em nosso redor todas as pontes.

Livra-nos, 
ó Senhor, livra-nos do vírus da comunicação vazia que vem em doses massivas, 
pois essa comunicação vazia se sobrepõe à verdade das palavras 
que nos chegam do silêncio, do silêncio.

Livra-nos,
livra-nos, Senhor, do vírus da impotência, 
pois uma das coisas mais urgentes a aprender,
ó meu Senhor, 
nós temos que aprender urgentemente
o poder da nossa vulnerabilidade.

Livra-nos, Senhor, 
por favor, livra-nos do vírus das noites sem fim, 
pois Tu não deixas de recordar que Tu mesmo ,
ó Senhor, nosso Deus,
Tu mesmo nos colocaste como sentinelas da aurora.»

Esta prece é pura poesia dirigida a Deus. Todos os que me conhecem e lêem sabem dos profundos laços que me ligam a José Tolentino de Mendonça. Aqui, nesta oração, temos bem a imagem de quanto somos pequenos e de quanto pouco podemos se não tivermos Deus ao nosso lado!

HSC

domingo, 9 de agosto de 2020

Peripécias

Durante este período post operatório, que tenho estado a partilhar convosco, tive peripécias que me provocaram fortes risadas. Desde o não me entender com o elétrico processo de na cama levantar cabeça e pés, cujos botões eram sempre aqueles que não deveria usar, até ao duche que, munido de uma cadeira, me fazia sentir como se não me tivesse lavado, os episódios cómicos sucederam-se porque felizmente não tenho prática hospitalar.
Chegada a casa tudo me parecia fora do lugar em que eu tinha deixado as coisas. A juntar a esta vaga estranheza os “apelos” telefónicos da Autoridade Tributária para eu pagar impostos que se venciam daqui a um mês e já estavam pagos, eram em série. A princípio assustei-me, porque tinha deixado tudo liquidado. 
Depois verifiquei que a dita AT ainda não tinha dado por isso e insistia. Assim, tive uma conversa rija com uma senhora que me atendeu daquele inadmissível número que começa por 707 e nos custa coiro e cabelo. Como a senhora era de lenta compreensão não conseguia entender que eu já pagara antecipadamente o que ela queria receber de novo. Quando, por fim, nos entendemos, ela, simpaticamente, disse-me para eu não ligar às mensagens que saiam de modo automático! ia irritar-me mas lembrei que coração novo  não deve ser mal utilizado e, cá dentro de mim, mandei a senhora dar uma volta...
À noite, para compensar, deu-me uma genica tal que vim para o computador apagar mails e relaxar. Eram mais do que as mães, porque lhes punha a vista em cima há uma semana
Confesso-vos que, na altura, o que me apetecia, mesmo, era ir para a rua arejar e aproveitar o fresquinho. Mas duas da madrugada, não era a hora mais propícia.
Em alternativa fui ler poesia do meu querido amigo Luis Castro Mendes e acalmei!

HSC

sábado, 8 de agosto de 2020

Coração abençoado (2)

Prometi o resto da aventura e ela aqui vai. Num dos últimos dias antes do Natal, resolvi ir ao Corte Inglês para comprar a prenda de um afilhado, que ficara esquecida no rol das preocupações da data. Fosse pelo amontoado de gente, fosse pelo forte aquecimento, senti-me, subitamente, com falta de ar. Nestas coisas sou calma e fui para um canto, fazer exercícios respiratórios e fornecer mais oxigénio aos pulmões. Quando consegui dominar a situação, saí e chegada à rua vi que não estava bem. 
Cautelosa fui à Dra Sofia Furtado, pneumologista muito competente do Hospital da Luz e a quem fiquei a dever, possivelmente, a minha vida. Viu-me e disse-me logo que teria de ser internada para exames. Torci o nariz, não ia preparada para tal proposta pouco aliciante, mas no dia seguinte foi ela que me telefonou para que eu não fugisse. Nestes momentos eu passo de imediato de mãe para filha e de irmã mais velha para a obediente irmã mais nova. Ou seja, nem pio...
Lá fiz o primeiro Covid, que me pareceu chegar ao cérebro e lá me internei durante 4 dias nos quais fiz de tudo um pouco, sob a proteção do meu arcanjo na terra que é a Dra Isabel Galriça. 
Ou seja, dei utilização a grande parte da aparelhagem hospitalar cujo dom  é  ver por dentro o que não se vê por fora. E aí percebi não só o que precisava de ser arranjado como o que, possivelmente, teria originado o desarranjo, que se admite ter sido consequência de anginas mal tratadas - um perigo para rins e coração -, num tempo em que não havia antibióticos. 
Havia que fazer duas intervenções. Uma para desobstruir uma coronária e outra para colocar a válvula. E aí entraram em ação dois anjos. O Dr Rui Teles que executou qualquer delas e o Prof Nuno Cardim que as acompanhou ao milímetro através de toda a tecnologia usada para o efeito. Havia, ainda, na sala uma outra equipa preparada para  fazer a colocação da válvula de peito aberto, se por algum motivo, a outra se tornasse inviável. E foi deste modo que eu, meio acordada, fui assistindo às minhas lindíssimas vias para chegar à carótida. 
Dias depois, terceiro teste Covid e, finalmente a colocação da válvula. Não avaliam como é impressionante a precisão da equipa médica mesmo, agora, debaixo de um vestuário que parece o de um astronauta. Os médicos sairam alagados em suor da  sala gelada como um iglo.
Para mim, o que se seguiu foi o caminho para o Paraíso, excluindo a sala de cuidados intensivos que, sendo necessária, não é repousante. Mas foi só uma noite...
No dia seguinte voltei ao quarto rodeada de ternura e tendo à minha cabeceira o meu filho que antes só me vira de passagem, o Prof Cardim que foi seu colega desde a infância e o meu arcanjo, com tudo já preparado.Julgo que terei conhecido toda a equipa de cardiologia de tão simpática que sou!
No fundo, o meu coração foi reparado em 4 dias. E andou ele a penar por assuntos que agora são de pura lana caprina. Aprendi tarde, mas aprendi, que nada vale o nosso desassossego, comparado com aquilo que passamos quando é a vida que está em causa. Tanta irritação desnecessária, tanta lutas que só alimentam o ódio, tanta contenção para não ser mal vista, tanta, tanta hipocrisia. Perante a morte somos, de facto, todos iguais no sofrimento e na angustia.A mim salva-me quem lá em cima e cá em baixo, vela por mim...

HSC

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Coração desregulado (1)

A primeira prova do efeito dos anestésicos está aqui: perdi um texto, facto que nunca me tinha acontecido.
A prosa em questão tinha uma certa piada, porque contava como isto de alguém mexer com o nosso coração é história que tem que se lhe diga. Para já e por norma, a familia gosta muito, por amor, de mandar em nós nessas alturas, já que considera que ficamos debilitados. No meu caso, filho e irmãos tornaram-se momentaneamente meus pais e acabaram a perceber muito mais deste orgão do que eu.
Aliás, tendo tido só dois namorados  entendi que nenhum deles podia ter constituido matéria para me mandar uma válvula pelos ares ou me entupir uma carótida...
Ora se não foram eles os culpados, alguém teria que ser. Eu é que não. Admiti que a culpa fosse dos meus pais, mas também não me pareceu bem tirar essa conclusão, não estando eles vivos. o que não permitia o contraditório.
Acabei, finalmente por descobrir um culpado. Mas disso falo-vos no próximo episódio...

HSC

terça-feira, 4 de agosto de 2020

The Gift - Primavera




Não estamos na primavera, mas ouvi este repertório e apeteceu-me partilha-lo convosco, enquanto tento encontrar um texto que escrevi ontem e se eclipsou. 

HSC

domingo, 2 de agosto de 2020

É a vida...

Durante estes sete longos meses que passaram, não poderei dizer que tive uma vida fácil. Com efeito,  após duas pneumonias distanciadas de um mês, com características um pouco estranhas, acabei a fazer duas intervenções ao coração, no escasso periodo de dez dias.
Não me queixo, fui operada e acompanhada por um conjunto de cardiologistas do que há de melhor nesta área. Como sempre a Dra Isabel Galriça Neto foi o meu arcanjo guardião e o Dr Rui Teles foi quem me devolveu a excelência cardíaca a que na minha idade ainda posso aspirar. Ou seja, ter a qualidade de vida de uma jovem de 50 anos. ..
Discreto mas de uma ternura especial, cheio de humor ,esteve o Prof Nuno Cardim, que foi colega do meu filho Paulo desde os bancos da primária. E cumulo dos cúmulos, ainda tive duas conversas com o meu Padre Tolentino que nunca me abandona em qualquer situação mais dificil, dizendo-me sempre que "ainda tenho muito por cá fazer"!
Há bastante tempo que aprendi que é a doença que se combate e não o doente. Talvez por isso, lembro-me bem de ter pensado, antes de ir para as salas de intervenção, que a luta que eu travava era pela minha vida, porque da doença quem tratava eram os médicos. 
Foi um período muito interessante para perceber como naquele hospital se trabalha em rede e tudo flui sem problemas. E também ter a consciência do quão esgotante é o trabalho de uma equipa que tem permanentemente de jogar para o mesmo lado!
Fiquei mais magra e mais exigente comigo, porque o custo benefício da intervenção tem que ser amplamente compensador. Assim e dentro dos limites da pandemia em que vivemos, vou esforçar-me por aproveitar muito bem os anos que me faltem! Nem mais...