OPINIÃO
A realidade nunca é a preto e branco
TERESA DE SOUSA 30/11/2014 - 01:15
1. As abstracções são fundamentais numa democracia, exprimem-se através de princípios fundamentais e, mesmo que a realidade as desminta algumas vezes, não se pode funcionar sem elas. Uma delas é precisamente a igualdade dos cidadãos perante a lei. É por isso que me arrepiam algumas frases que são frequentes no debate em torno da prisão de José Sócrates, como já me incomodavam na detenção de Ricardo Salgado: “Finalmente a justiça chega aos poderosos”. Para gáudio do povo, obviamente, e para acabar com a impunidade dos que mandam ou dos que são ricos. Percebe-se este lado do debate, quando o país descobre em dois ou três meses que o Grupo Espírito Santo estava falido, que a PT, florão nacional, afinal era gerida de tal forma que foi arrastada pelo turbilhão do GES, que o mais alto funcionalismo do Estado estava envolvido num esquema para ganhar dinheiro com os vistos gold e que um ex-primeiro-ministro poderia ser preso ao aterrar em Lisboa e declarado em prisão preventiva por acusações muito graves.
Claro que há outra maneira mais aceitável de traduzir esta ideia e que é “finalmente, chegou o fim da impunidade”, mas que só terá valor se os princípios fundamentais da Justiça funcionarem devidamente. O debate mais fácil sobre esta sucessão de coisas tremendas que nos estão a acontecer é o que opõe na praça pública aqueles que se dedicaram com uma persistência invulgar a acusar Sócrates de abuso de poder e os que o consideravam um alvo demasiado explícito da Justiça (que também tem agendas políticas) e um primeiro-ministro com qualidades, apesar dos seus enormes defeitos. Agora, os primeiros sentem-se vingados. Os segundos revoltam-se contra mais um processo em que a violação do segredo de justiça é de novo utilizada para criar um quadro desfavorável ao antigo primeiro-ministro, condenando-o na praça pública antes mesmo de qualquer acusação. São duas posições respeitáveis mas que não esgotam a questão.
De resto, o debate já extravasou a questão da Justiça para entrar na política e chegar a uma conclusão estranhamente “unânime” segundo a qual António Costa está condenado a apenas dois destinos possíveis: a desgraça ou a genialidade (como disse Marcelo e toda a gente se pôs a repetir). A forma como a comunicação social funciona também ajuda a fazer passar a mensagem. Primeiro, dizemos que o Congresso do PS será apenas sobre Sócrates, um velório em torno de um fantasma que ensombra a consagração do novo líder. Depois, chegamos à FIL e só queremos saber o que pensa cada um sobre Sócrates ou se Costa deu o justo número de linhas ao caso no seu discurso de abertura. Ou seja, transformamos uma profecia numa realidade, aliás muito mais fácil de reportar do que o que se passa em termos políticos neste Congresso. Estou a escrever estas linhas a meio da manhã e pode ser que me engane, o que seria óptimo.
Não creio que Costa fique sem margem de manobra com este fantasma que lhe caiu em cima. Toda a gente sabe que, tendo sido ministro de Sócrates, nunca aceitou pertencer a qualquer “ismo”, que sempre se colocou no PS com uma assinalável autonomia, mesmo quando era ainda um jovem secretário de Estado de Guterres. Quando se viu confrontado com uma desautorização do ministro com quem trabalhava, disse ao então ao primeiro-ministro: ou ele ou eu. E foi ele. Saiu do Governo precisamente quando achou que tinha de se afastar do primeiro-ministro, se queria preservar a sua autonomia e acabar com a situação de “número dois”. Quando foi agora confrontado com a prisão de Sócrates, teve a capacidade de colocar as coisas no seu devido lugar. Tem de adaptar-se às novas circunstâncias, mas tem capacidade para o fazer.
O PS tem a sorte de dispor neste momento de um líder forte que é uma espécie de “dois em um”. Explico-me. Como os líderes socialistas da geração anterior à sua, tem vida própria, pessoal e profissional, bebeu muito cedo algumas fortes convicções sobre aquilo que é justo e o que não é, bem como a importância fundamental da liberdade em todas as suas declinações. Tem mundo, como se costuma dizer, e tem cultura. É mais jovem, como Passos Coelho, mas a sua vida é diferente da de Sócrates ou do primeiro-ministro, que foram quase sempre dependentes da política. O escândalo que hoje envolve Sócrates esbarra contra essa autonomia.
2. Não gosto nem desgosto de Sócrates. Não pertence à minha geração que, em grande parte, se formou na política no combate contra o fascismo. Simboliza um tipo de lideranças pragmáticas que hoje dominam a maioria dos partidos de centro-esquerda da Europa, que ficou sem pé com a Queda do Muro e com a globalização económica. Comecei por achá-lo um líder de plástico, quando ganhou a liderança do PS, que Vitorino não quis. Percebi rapidamente, sobretudo nos Conselhos Europeus e em inúmeros fóruns internacionais, que não era só isso. Dominava os assuntos mais complexos da política europeia com uma enorme facilidade e competência. O seu estilo demasiado violento não gerava qualquer empatia. Cometeu um erro político enorme quando, em 2009, para voltar a vencer as eleições, aproveitou a crise financeira para transformar-se de líder “pragmático” num ideólogo da esquerda, defensor do papel do Estado na economia e opositor feroz do neoliberalismo. Esta mudança levou-o ao desastre político. A sua interpretação do poder, que exerceu muitas vezes forçando os seus limites, aproxima-o de uma geração de líderes europeus que tem proliferado à direita ou à esquerda.
Estou, naturalmente, a pensar em Sarkozy e no seu estilo quase brutal de fazer política, igualmente sem limites, também ele alvo de vários processos na Justiça francesa, também ele com uma convicção fundamental: fazer aquilo que resulta independentemente de ideologias, de credos, das convicções. O outro mais conhecido mas, de certa maneira, diferente é Berlusconi, que financiou e construiu um partido de cima a baixo (deu uma ajuda o facto de ser um dos homens mais ricos da Europa e dominar vários órgãos de comunicação social) e que, contra todas as previsões, ganhou várias eleições mesmo estando envolvido em processos de resto bastante mais condenáveis. O populismo e o pragmatismo (que, quando misturados, são perigosos) são hoje o vírus que afecta as democracias europeias, não deixando incólumes os partidos do sistema. Também poderíamos falar de Gerhard Schroeder, que reformou a Alemanha e saiu directamente para presidente de uma grande empresa de capitais russos e alemães (a North Stream, para ligar o fornecimento de gás directamente entre a Rússia e a Alemanha que ele próprio patrocinou) sem qualquer período de nojo. O dinheiro entra demasiadas vezes na equação. Blair, que foi um líder extraordinário, utilizou o seu prestígio para acumular uma enorme riqueza. Lula, que merece tudo, não se coíbe de alugar a maior suite do Palace de Copacabana para depois nem sequer a utilizar porque decidiu ir mais cedo para S. Paulo. Não é tudo a mesma coisa mas é um sinal desagradável.
É verdade o que José Manuel Fernandes, director do Observador e inimigo figadal do ex-primeiro-ministro, disse sobre a questão do carácter dos políticos, que é uma questão fundamental. Também acho. Mas acho ainda outra coisa: a facilidade com que hoje acusamos os políticos de falta de carácter, disto e de mais aquilo, do alto da nossa sapiência, é tão grande, que acaba por matar por excesso a exigência dessa qualidade. Vemos o mundo a preto e branco, condenamos sem pensar duas vezes (é sempre mais fácil e mais seguro) e contribuímos deste modo para o empobrecimento do debate político e do escrutínio político, ao apagar as diferenças. Quanto à Justiça, esperamos que tenha melhorado com a nova legislação nacional e europeia. Mas temos ainda na memória o caso Casa Pia, que foi um verdadeiro nojo. Precisamos de ver para acreditar.
Aqui fica o excelente artigo que Teresa de Sousa hoje publica no jornal Publico e que me permiti reproduzir na íntegra, porque considero que nele se faz uma séria análise de um problema que, entre nós, tem sido debatido com excesso de paixão.
HSC