"A noite próxima, quando a gente chega a casa, cai uma calma sobre
o bairro que limpa as ruas e os espíritos. Não falo de silêncio, nem de sono,
mas de uma serenidade habitada pelos ruídos do costume, pelos hábitos diários e
as urgências da necessidade. O pão que é preciso comprar na loja da esquina, ir
buscar os filhos à escola, preparar o jantar de janela aberta, o cheiro a
refogado enchendo os ares. As conversas de quem encontra o vizinho e precisa de
alimentar os laços e as ilusões de proximidade enquanto se vai afastando,
recuando, recolhendo ao engano do lar. O ronco dos carros a serem estacionados,
o barulho dos pratos e das chávenas no café da esquina, o vento trazendo pela
janela o odor distante de fumo que vem das vivendas.
Há medos que espreitam, como sempre, todos os dias, todos os medos
emboscados no caminho, e os poucos segundos que se transformam em minutos,
minutos imersos nessa proximidade quotidiana e fingida, são as bóias que nos
mantêm à tona. Nadamos entre escolhos, e vamos ao encontro de quem nos
reconhece, mesmo que não saiba o nosso nome, nem de que sonhos somos feitos.
Entre escolhos, resgatando connosco a verdade que vamos fabricando, chegamos a
ilhas que não aparecem no mapa.
A noite empurra o dia para o passado. Somos como um velho disco
riscado, de cada vez que tocamos mais ruído de fundo produzimos. Mas as mãos
que retiram o disco da capa, que puxam a agulha e a deitam devagar sobre os
sulcos, as mãos, reconhecemos nelas o que somos, o seu cheiro, a pele porosa
por onde se infiltra o amor. A mesma canção tocada tantas vezes, e nunca nos
cansamos dela. Talvez um dia o bairro faça sentido. Cá dentro, a isso nos
conduz, um sonho de quem nunca encontrou o lugar certo para dormir."
Sergio Lavos in aubade.blogspot.pt
A blogosfera é um campo onde se encontra do melhor e do pior. Compete a cada um de nós fazer a necessária selecção.
Hoje descobri este belo texto e apeteceu-me partilha-lo convosco. É um "tom" bem diferente do meu e, parece-me, revela algum cansaço, algum desencanto. Por isso mesmo, chamou a minha atenção!
HSC
8 comentários:
A noite empurra o dia para o passado...
Além do cansaço, nostalgia...
Carla
Talvez, hoje, a senhora se encontre um pouco triste. O texto é belo na sua verdade sentida.
Há dias assim.Pessoalmente tenho sempre presente que:
"Não há mal que sempre dure,nem bem que não se acabe".
Então é ter coragem e força nos momentos menos bons porque os bons virão.E infelizmente há muitos que estão pior do que eu e é a força desses que me ilumina.
Fátima
🌷
que lindo. gosto muito.
MC
e pelo que se ouve se sente-se...não é caso para menos!
Gostei!
O perigar da invasão árabe em países Europeus. Quero dar uns grandes parabéns, à grande amiga Helena Sacadura Cabral.
Gosto muito de ler os textos escritos no livro da escritora Helena Sacadura Cabral.
Enviar um comentário