domingo, 15 de março de 2015

Da reflexão


“Descobrir e desenvolver as próprias capacidades é e será sempre mais gratificante do que acumular histórias e citações de outros autores. Pensar pela própria cabeça é, no entanto, e cada vez mais, um desafio e uma proeza, entorpecidos que estamos por tanto estímulo e ruído à nossa volta. Ainda assim, quem busca a verdadeira essência das coisas tem de reflectir sobre elas. E vivê-las na primeira pessoa do singular. O escritor pode partilhar a sua sabedoria num livro, mas não pode emprestar a sua inteligência e compreensão do mundo. Também o pintor pode deliciar-nos com os seus quadros, mas não nos pode emprestar o seu entendimento estético. Sem reflexão também não há sentido crítico. Hannah Arendt, que desenvolveu o conceito da “banalização do mal”, estudou a personalidade de Adolf Eichmann e concluiu que este homem, responsável pela deportação de centenas de milhares de judeus para os campos de concentração, era, na verdade, um homem comum, incapaz de pensar por si próprio”.

     Comentário feito no blogue Cair em tentação in http://assimterraceu.blogspot.pt


Este comentário chamou a minha atenção porque leventa um problema real. Escolhendo a escrita - que será a área que domino melhor - a questão levantada tem todo o cabimento. Com efeito, apesar do autor tentar ser claro e chegar ao leitor da forma mais simples, o certo é que ele apenas pode partilhar o que sente, mas não pode emprestar a sua inteligência ou a sua compreensão a quem a lê.
Possivelmente é por isso que certos livros não chegam a certos leitores. Eu própria, a propósito do última obra do Nobel da literatura, aflorei este tema. Não gostei dos três livros que li, possivelmente, porque o meu tipo de inteligência e observação do mundo é muito diversa daquela que Modiano pretendia atingir. E, também eu, neste blogue já tenho escrito com a intenção de ser clara e, apesar disso, verifico que um ou outro leitor me não entendeu.
O mesmo se passa com os quadros, as fotos, etc. O autor tem um contexto cultural e o leitor pode ter outro. Apesar disto, desta dificuldade, nenhum deles está dispensado de refectir e, ao faze-lo, tentar compreender o outro.
A comentadora levanta ainda um outro problema, igualmente interessante, que Arendt analisou muito bem e que respeita à banalização do mal, esse fantasma que persegue as sociedades e tanto irrita uma certa elite quando levanta o problema do "homem comum" e do seu julgamento. Mas esse é um outro tema fracturante e que a filósofa pagou bem caro...

HSC

4 comentários:

Fatyly disse...

Quando diz: " E, também eu, neste blogue já tenho escrito com a intenção de ser clara e, apesar disso, verifico que um ou outro leitor me não entendeu."

lembrei-me do meu professor de português e literatura que nos dizia tantas vezes: "algo escrito por alguém tem um sentido, mas lido por dez poderá originar dez sentidos diferentes e ou dez interpretações diferentes"! Ou até fazer com que não gostemos, o que é de todo compreensível e aceitável! Para mim foi um dos melhores professores que tive e as suas duas horas de aula era o silêncio absoluto, sem nunca ter chamado a atenção ou castigado algum aluno para o quer que seja ao invés de outras disciplinas que os mesmos de sempre aprontavam a manta:)

A seguir vinha sempre à baila este poema que sei de cor (como tantos outros de outros autores)

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Fernando Pessoa

Ainda hoje o meu maior prazer é ler e tento sempre atingir o cerne da questão...mas nem sempre acerto e ou estou de acordo!

Gostei muito deste post e gosto muito do que escreve, já para não falar dos seus livros!

Helena Sacadura Cabral disse...

Muito obrigada Fatyly

Paulo Abreu e Lima disse...

Certas elites julgam-se no direito (e dever) de mudar o "homem comum", mas na maioria das vezes nem o compreendem. Junta-se a presunção com a ignorância, uma parelha condenada a equívocos.

ps: A comentadora chama-se Miss Smile e escreve aqui.

Helena Sacadura Cabral disse...

Paulo
Não pus o nick name da comentadora, por ele ser isso mesmo e não identificar ninguém.
Aliás a seriedade do comentário não liga com Miss Smile...