1- “Que coisa são as nuvens” será um enunciado de um enigma que se
vai decifrar ou será uma pergunta? Eu inclino-me para a última hipótese, pela
simples razão de que essa é uma pergunta que me começou a ocorrer com
frequência, assim que ultrapassei aquilo a que a curiosa Cloud Apreciation
Society, citada por JTM, chama “a ditadura do céu azul”. De facto, tudo tem um
tempo, na vida: vivemos todos os anos de juventude real e o de juventude
imaginada apenas concentrados no azul – que temos como sinal infalível de
beleza, alegria, felicidade. Mas chega uma altura em que começamos a prestar
atenção aos tons pardos e mais indefiníveis do cinzento – de que as nuvens são
o mais próximo e o mais visível exemplo. Talvez o cinzento antecipe o branco
final e definitivo – o insondável branco que tudo apagará para sempre.
Com a idade, fui começando a prestar atenção às nuvens. Comecei a vê-las
não apenas como um sinal de chuva, de mau tempo, de férias ou fins-de-semana
estragados. Mas também como um sinal de água, de vapor, de leveza, de
imponderável: um sinal de vida e da fragilidade da vida.
Dei por mim a 10.000 metros de altitude ou num dia de verão, deitado no sol
da areia da praia, de olhos fechados, a contemplar as nuvens e perguntar-me
isso mesmo: “que coisa são as nuvens?” Li num romance de um autor francês que
há várias espécies e classificações de nuvens e que as suas formas, a sua
densidade e o seu deslizar nunca são sem sentido: apenas não estamos preparados
para o decifrar. JTM diz que “precisamos do socorro das nuvens, uma turbulência
ou uma ruptura de significado na representação habitual do mundo”.De facto,
elas são uma ruptura, uma turbulência: no mar, prenunciam o mau tempo a seguir
à bonança e metem medo; no ar, quando vamos no ventre de um avião e as vemos
avançar sobre nós, compreendemos como é frágil a nossa fragilidade comparada
com a delas; mas, vistas de terra, com os pés bem assentes na terra, as nuvens,
se bem que pareçam distraídas, jamais são inconsequentes. Basta pensar o que
seria a pintura sem elas, o que seriam os pôr-do-sol sem elas, o que seria o
céu despido delas.
Não acho, pois, que a escolha, por parte do JTM, deste título para este seu
livro de crónicas, seja um acto de diletantismo estético ou um exercício de
decifração que por si mesmo convoque a leitura dele. É tão pouco vazio de
significado o título quanto as nuvens o são.
Acho até que, literariamente, o JTM vive dentro de uma nuvem. A sua escrita
é uma espécie de nuvem – uma que ainda não foi classificada – e de onde ele,
sem de modo algum estar desligado do mundo (olha quem!), vê o mundo de mais
alto e, portanto, vê mais longe, como se vê quando se observa as coisas de
cima. Repito que estamos perante uma pessoa e uma escrita intrinsecamente
ligado às coisas terrenas, palpáveis – “incarnado” nelas, como ele diz aspirar
a ser e a ser visto. Mas é uma escrita que plana acima dessas coisas, que são o
pão e o sal de que quase todos os outros que escrevem se alimentam em
exclusivo. A sua escrita não tem, a meu ver, a consistência sólida, evidente e
indesmentível das coisas terrenas; mas também não tem a absoluta e imperfeita
leveza das coisas etéreas. É uma espécie de cortina entre essas duas dimensões,
uma espuma suspensa entre territórios distintos, embora confluentes, uma massa
líquida e translúcida (aquilo que transcende a lucidez), e certamente formada por
pensamentos dispersos, viagens sem rumo, lugares de abandono sem regresso,
ilhas abandonadas, dúvidas sem resposta, seiva, ar respirado, lágrimas. Uma
nuvem, pois.
O JTM é, em minha opinião, o melhor colunista do Expresso – isto é, aquele
que mais vale a pena ler.
O que mais me seduz na sua leitura semanal não é a exuberante demonstração
de uma cultura tão vasta e tão sequiosa que não há nada que a não atraia e de
que ele não se ocupe: a música, a pintura, a fotografia a literatura, o cinema,
a religião. E também não é o seu inteligentíssimo esforço de tornar a cultura,
o seu saber e a sua aprendizagem, um objecto de utilidade evidente na
compreensão do mundo que nos rodeia e das coisas todas que nos espantam. Não, o
que eu mais admiro na sua escrita e no seu pensamento é exactamente esse
espanto perante o mundo. A sua capacidade de dar testemunho dele e de nos
chamar a atenção para a grandiosidade de tudo, até das coisas aparentemente
pequenas. Porque, como ele diz aqui, “sobra sempre vida à história que contamos
dela”.
Assim, vamos dar nestas crónicas com dissertações exuberantes de coisas
como o bolo de bolacha - o seu preferido – ou o saudoso bolo de arroz – a que
chama “uma causa perdida”, sacrificado à “massificação da pastelaria que nos
rouba a vida às dentadas”. Ou sobre o significado e a importância do plantio de
batata, como manifestação de vida, de continuidade e de resiliência. Ou sobre a
transcendência das várias camadas sobrepostas de cor das maçãs pintadas por
Cézane. Ou sobre a impossibilidade de encontrar um verdadeiro spaghetti alla
amatriciana fora de Itália.
Tal como ele diz acerca de Eugénio de Andrade, também se pode dizer sobre
si que “não consentia em distrair-se da responsabilidade que é viver diante de
coisas tão elementares como a luz da manhã, os goivos que florescem, o branco
da página, o olhar das vítimas ou o olhar do seu gato”.
Sim, é preciso olhar. É preciso olhar ainda, uma e outra vez. É preciso
saber olhar – ou, como ele diz, numa associação de ideias particularmente
feliz, saber “reparar”. Cito (pag. 89):........
2- A este propósito, aliás, queria dar nota da minha única discordância
relativamente a uma característica presente em alguns destes textos. Dá-se o
caso de por vezes sentir que é como se o JTM tivesse medo de que os leitores
não percebessem a grandiosidade das coisas do mundo, de que fala com
deslumbramento. E então, acrescenta à descrição e ao testemunho uma espécie de
catálogo explicativo - se assim me permito interpretar. Passa de contador da
história, de testemunha do mundo, a guia. Como se as coisas evidentes o não
fossem por si mesmas, uma vez simplesmente contadas. Como se a beleza
precisasse de ser explicada, a alegria precisasse de ser recomendada, ou o
sofrimento precisasse de anestésico, para além da sua brutalidade, pura e
simples. Faz-me lembrar a diferença entre Dostoievsky e Tchekov – que eu prefiro
largamente. Dostoievsky descreve tudo tão minuciosamente e de cada descrição
extrai uma lição e uma moral tão incontestáveis, que não sobra nenhum espaço em
branco por preencher, nenhuma liberdade criativa ao leitor: ele dá e recomenda.
Tchekov, pelo contrário, descreve apenas, e em substantivos simples, uma
estação de comboios na Rússia de então ou uma praia no Mar Negro. E nós, que
nunca lá estivemos, adormecemos a imaginar a praia e a estação à medida da
nossa imaginação.
O esplendor do mundo, das coisas do
mundo, não precisa de ser explicado. Precisa apenas de ser contado – e essa é a
função do escritor – ou precisa de ser pintado, fotografado, filmado, musicado.
Permitam-me, a propósito, que chame aqui à colação um escritor que, por acaso,
é a minha mãe. Mas que não vem aqui por acaso ou porque eu tenha por dever de
ofício citá-la em tudo o que são ocasiões públicas. Pelo contrário: na minha
intimidade, não há um dia em que eu não a cite para mim mesmo; mas, em público,
é diferente e é penoso. Mas chamo-a aqui porque sei que ela é um dos autores de
referência do JTM – um grande poeta reconhece sempre o outro. O Cristo
Cigano...
“O caminho da manhã”...
Numa passagem de um destes textos, o JTM fala sobre a amizade e diz uma
coisa que eu gostaria de ter sido capaz de dizer de forma tão simples e
certeira: “a amizade não só guarda silêncio, como ela é guardada pelo
silêncio”. É exactamente o que eu penso: a amizade, como o amor, como todos os
grandes sentimentos, precisa do silêncio entre parceiros. Acredito que nenhuma
relação que não saiba habitar o silêncio e fazer dele um espaço partilhado e
íntimo sobreviverá. Aliás, penso que tudo o que é importante precisa de
silêncio – até a música. E a escrita também: há um silêncio entre as palavras,
as frases, as páginas de um livro, que o autor tem de ser capaz de criar e o
leitor ser capaz de escutar.
3- Aqui chegados, alguns de vocês estarão porventura a indagar-se: “mas afinal,
de que trata o livro do JTM?”. É a mais legítima das perguntas, a mais lógica
de fazer, nestas ocasiões. Para aqueles que são seus leitores habituais no
Expresso, a resposta é desnecessária: elas sabem-na. Mas para os outros, eu -
que fui formatado numa escola de jornalismo clássico, em que a todo o tempo
temos de ser capazes de fazer o lead de qualquer notícia – não há como fugir a
uma resposta. E, pois, mesmo correndo o risco de o próprio autor discordar de
mim, eu diria que o lead desta notícia, a razão de ser deste livro, desta
reunião de crónicas, é o mais banal e o mais premente de todos: um personagem à
procura de um autor, um autor à procura de um sentido... para tudo isto. E isto
é a vida: o que vimos, o que reparámos, o que fizemos e o que deixámos de
fazer, o que lemos e o que aprendemos, o que ouvimos e o que escutámos, o que
foi o nosso percurso, o que fizemos desse extraordinário acaso cósmico que é o
de termos sido seres vivos, entre tantos milhões de hipóteses de o não sermos,
neste planeta, nesta vida, neste tempo. E, inevitavelmente, a busca de uma
resposta à fatal pergunta que sentido fez tudo isto, afinal, se não sabemos
para onde vamos, quando o azul passar a cinzento e quando o cinzento passar a
branco.
Eu – que definitivamente, segundo creio, e infelizmente – não acredito num
outro céu azul à espera dos homens de boa vontade, quero todavia acreditar que
ao menos exista o Inferno, para acolher os homens de má vontade, os que, por
aqui tendo passado, transformaram vidas alheias num Inferno. Mas não estou,
obviamente, certo disso, muito pelo contrário. Mas espero que, de algum modo
que muitas vezes não sabemos qual possa ser, haverá, no fim de tudo, uma
justiça feita aqui, entre os vivos – quanto mais não seja, quando já nada nos
restar do que estarmos definitivamente a sós perante a nossa consciência e o
último segundo de lucidez for ocupado a responder à pergunta se a nossa vida
fez sentido.
É isso, em minha opinião, que perturba, que ocupa e que gritantemente se
impõe na leitura destes textos. Um homem à procura de um sentido para a vida: a
dele e a dos outros. É isso que se poderia inferir apenas da leitura de um
destes textos, se todos os outros também o não confirmassem. Chama-se o “Elogio
das pequenas coisas”, e eu vou ler uma passagem com a qual termino e que li,
deslumbrado, enquanto comia umas lapas grelhadas na brasa, com azeite e alho
(acho que o JTM, gostará de saber que assim a alegria das pequenas coisas não
nos distrai da evidência das grandes): (pág.33).
Este é o texto da apresentação feita por Miguel Sosa Tavares ao livro que reune as crónicas de Tolentino de Mendonça, intitulado "Que coisa são as nuvens" e que, sob sua autorização, publico a pedido de uma comentadora.
É um belo texto que decerto interessará mesmo àqueles que o não ouviram!
HSC