Ontem à noite andei pela casa a acertar os relógios que só daí a uma hora deveriam ser ajustados, na tentativa de prolongar o efeito do maravilhoso filme que acabara de ver. Acertadas as máquinas fui para o terraço e lá me deixei ficar estirada no cadeirão a olhar as luzes da cidade adormecida e a lembrar a conversa que, na véspera, havia tido com o Padre Tolentino de Mendonça, a quem fora levar o meu último livro que, como já qui disse, lhe é dedicado.
No silêncio da noite fiquei a pensar no filme e na conversa tida com o meu pastor, regozijando-me da chance enorme que tenho, por nesta idade, a vida ainda ter tanto para me oferecer.
Não me refiro a bens materiais - trabalho muito para manter o que tenho -, mas sim à liberdade de que gozo de pensar, de escrever, de dizer o que sinto e de ter um PadreTolentino que me ouve sem escândalo e que me ajuda neste meu último caminhar para Deus.
Muito possivelmente este texto não terá nexo para quem não seja crente. Mas isso não me inibe de confessar que o actual caminho que pretendo percorrer tem, sobretudo, em vista a aprendizagem do saber de que necessito para me entregar, com dignidade, nas mãos de Deus.
Porquê? Porque julgo ser a altura de aprender a saber morrer, já que julgo ter aprendido a saber viver. Estas palavras estão longe de ser tristes. Pelo contrário. Elas dão sentido ao que me falta ainda percorrer.
Considero que o saldo da minha vida, a diferença entre as dores que passei e aquilo que recebi é francamente positivo. Nada me foi dado gratuitamente. Mas é justamente esse custo benefício, esse preço anímico, a parte mais fascinante de tudo o que vivi.
A noite arrefeceu, eu voltei para dentro e, hoje, o sol entrava a jorros pelo meu quarto. Arranjei-me e fui deambular e rir com velhos amigos, a apanhar os bocados de vida que Ele, lá de cima, me ofereceu, num simples Domingo do início do Outono!
HSC