Na casa paterna, no escritório, havia uma estante de vidrilhos hexagonais forrada de damasco bordeaux igual aos reposteiros que cobriam a janela.
Essa era aquela que eu não podia abrir porque continha os livros que, segundo a opinião do meu Pai, uma menina - eu, no caso -, não devia ler.
Essa era aquela que eu não podia abrir porque continha os livros que, segundo a opinião do meu Pai, uma menina - eu, no caso -, não devia ler.
Houve sempre entre nós dois esta espécie de "guerrilha" entre o que eu entendia ser, de direito, o meu mundo e o que ele entendia ser o mundo a que eu tinha direito.
A minha Mãe servia para caldear as coisas, desejando para mim aquilo a que ela, só muito mais tarde, havia de ter direito. Ou seja a liberdade de dizer o que pensava e de fazer o que lhe aprazia.
Não eram amores menores, os que meu Pai nutria por mim, percebi depois. Era, sim, uma forma de proteger a sua "menina" daquilo que ele considerava serem as modernidades maternas.
Foi deste modo que os meus olhos se abriram para coisas que dificilmente entendia. Li, muito antes do tempo, Dostoiewsky ou Tolstoi, para só citar dois menos agrestes. E li poesia muito antes de saber o que ela era. Gostava da sua melodia.
Este mundo de janelas - ia utilizar portas, mas pareceu-me pouco oportuno - que se fechavam e se abriam, de proibições e de licenças, de coisas consideradas boas e más consoante o género, teve o condão de me libertar de qualquer tipo de espartilhos impostos e preparou-me, sem eu saber, para ser quem hoje sou. Não digo que o produto final tenha qualidade. Apenas me limito a gostar de mim, o que já não é pouco.
Os meus filhos sempre gozaram de grande liberdade. Até para asnear. Mas foi assim que a minha autora fizera comigo e eu repeti. Apesar dos ventos e das tormentas não estou arrependida. Faria o mesmo, de novo.
Os meus filhos sempre gozaram de grande liberdade. Até para asnear. Mas foi assim que a minha autora fizera comigo e eu repeti. Apesar dos ventos e das tormentas não estou arrependida. Faria o mesmo, de novo.
Agora, quando olho para a minha biblioteca e pego nalguns dos ditos "proscritos" lembro o meu Pai e sinto uma imensa ternura. De facto, só os anos criam a distância que nos dá alguma sabedoria.
HSC
HSC
13 comentários:
Só a distância dos anos nos deixa ver com clareza, esquecer dores que pensávamos a elas sucumbir e até perdoar a quem mantivemos amargura, ódios ou rancores.
Com o passar do tempo, amor aos nossos pais sublima-se e a candura de criança volta quando memórias do passado nos aquecem o coração.
Permita-me que lhe envie um beijinho Helena.
Admiro-a profundamente.
(^^)
O meu pai é ao contrário... se pudesse, dava-me a conhecer o mundo!
Sempre me deu toda a liberdade e sempre a usei da forma que bem entendi. É certo que sempre fui muito sossegada e nunca achei grande piada a aventuras mas ainda hoje, e já tenho 27 anos (quase 28 ;) ) parece ter mais vontade que eu viaje, do que eu de viajar.
Se eu disser: "Gostava de ir a ..." a resposta é imediata: "Vai!"
A minha mãe também sempre me deu mais liberdade mas coração de mãe é coração de mãe e na minha primeira viagem de comboio (PORTO-VIANA DO CASTELO) telefonava a cada passo, a saber como estava a viagem. O meu pai também ligou mas só para saber se estava a correr tudo bem.
No entanto, quando a senhora mencionava que tudo o que o senhor seu pai fazia era para "proteger a sua menina", com estas palavras me trouxe a memória o presente mais valioso que considero ter recebido dos meus pais: no dia em que eu fiz 20 anos, tinha em cima da secretária um envelope onde dizia que eu seria sempre, e passo a citar, "Our little baby" e pronto, lá entrei nos 20 anos a chorar de emoção, trago a carta todos os dias comigo mas nunca a leio (não consigo fazê-lo sem chorar) mas foi, indubitavelmente o presente material mais valioso que recebi, guardo-a como quem guarda uma relíquia.
Não há nada a fazer, os pais são mesmo assim.
Um beijinho,
Vânia
Cara Helena,
Também na casa dos meus pais, havia uma estante assim. Estava fechada à chave e a chave escondida.
Sempre li muito. Das outras estantes tirava à vontade, os livros que queria. Mas não chegavam. Eu queria os outros, os proibidos. Descobri que, com a lâmina de uma faca, conseguia levantar a porta, o fecho saía do buraquinho e puxando a porta ela abria. Tirava o que queria, fechava a porta e, com uma leve pancada o fecho interior, caía no buraquinho.
Foi assim, que antes dos 13 anos, já tinha lido "Os Maias" e todos os livros proibidos do Eça.
Quando, depois de casada, o meu pai me deu o livro para ler, ia-me desmanchado. Claro que me mostrei muito grata.
Tanto livro li assim! Desde Balzac a Zola (oficialmente só tinha lido "O Sonho", Abel Botelho, Alberto Morávia, Dostoiewsky, Hemingway, Maugham, etc etc.
Meu querido pai! Queria proteger-me.
Nunca um livro me fez mal. Adoro-os. São os meus amigos mais fieis.
Comecei a ler cedo. Nunca gostei muito de livros infantis. Só a Condessa de Ségur. O meu 1º livro a sério foi "O bem e o mal" do Camilo. Júlio Dinis todo, a seguir.
Foi vício que nunca perdi.
Tenho que ir mudar as lentes de ver ao pé. Gosto de ler antes de dormir.
Desculpe o testamento.
Abraço
Maria
É uma delícia ler o que escreve, pois tem a capacidade de nos envolver e sobretudo de se expressar de forma tão clara!... Sim, penso que também isso é resultado do "tudo" e do "todos" que viveu e por isso tão naturalmente chegar a quem a lê. Isso só mostra que é realmente um produto final de muita qualidade.
Fez-me lembrar a minha mãe e um certo "Je t'aime, moi non plus", cassete proíbida de ouvir lá em casa. Uma vez apanhei os meus pais distraídos e cá vai disto, surripei a dita e ouvi-a às escondidas no leitor do meu quarto e, do alto dos meus 7 anos, dei razaão à minha mãe, ela apenas me queria protejer de ouvir duas pessoas a sofrer do mesmo mal que então me afligia...uma enorme crise de asma!!! Imagine-se o espanto quando anos mais tarde percebi o significado. Pais sofrem, mas filhos também....
São, certamente, as saudades, da tal “protecção”, tão aconchegante, que encarna o amor paternal. Todos nós, aqueles que têm orgulho em si próprios, e que voltariam a repetir a maior parte daquilo que fizeram, chegam, quase sempre, à mesma conclusão. São “os anos que criam a distancia que nos dão alguma sabedoria” e que nos permitem, também, destrinçar o sentido das emoções afectivas, através da razão.
Aqui estou eu, a concordar, e a gostar, novamente, da sua prosa...
Um abraço e obrigada pela partilha.
uma descrição fabulosa sobre a sabedoria que o saber viver dá!
um abraço grande,
lb/zia
Cara Helena
O pior é quando a saudade é demais, faz doer. Para mim, tem sido assim ao longo da vida. Valem-me os livros, as personagens que conheço de cor. Bons amigos, esses.
Luísa Moreira
O comentário de Rita em 5 Novembro fez-me recuar muitos anos e situar-me na casa dos meus avó os livros da condessa de Ségur e de querer fazer o enxoval das minhas bonecas como o das bonecas da Camila ou da Madalena de Fleurville. Depois veio Júlio Dinis e "A Morgadinha dos Canaviais". Eça veio mais tarde com outro fascínio: o de ter ido à catequese no Sé que foi um dos palcos do "Crime do Padre Amaro". Hoje o fascínio vem pela mão dos meus sobrinhos: o "Noddy"de que tanto gostam (e eu também) é da mesma Enid Blyton que criou "As aventuras dos cinco". E tudo começou com um livro sugerido por minha mãe: "O coração" de Edmund d'Amicis.
Amiga
O meu testemunho sobre o amôr aos livros.
Foi grande na minha meninice, mas muito proibido pelo meu pais.
Depois já casada com 20 anos, voltei à leitura atraves do romance «O crime do Padre Amaro»
livro esse que desapareceu da minha mesinha de cabeceira até hoje.
Depois...
Veio a paixão pelo croché, rendas e bordados.
Mais tarde os filhos e netos.
Agora a paixão pela jardinagem, a biciclete, os passeios à beira mar, uma voltinha na minha Vespa, o computador,o arranjo da casa... e pouco tempo mais me sobra.
Um dia vou parar e direi:
Não posso mais.Fico aqui com a minha paixão de menina O LIVRO!
Um beijo para si amiga de grande admiração.
Também eu adorava ler e lia, lia muito. Muitas vezes, devido aos livros "proibidos", esperava que se deitassem e com uma lanterna lia debaixo dos cobertores.
Bons tempos!
FL
E com uma lanterna lia debaixo dos cobertores.
Momentos maravilhosos, estes!
MC
Cara Helena ( permite-me que a trate assim?),
admiro a sua a inteligência, sensibilidade e coragem. Mas, o que me fscina, é o seu sorriso maduro, sereno e apaziguador.
Deixo-lhe um abraço virtual mas quente, já que não o posso dar pessoalmente.
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