segunda-feira, 18 de julho de 2022

Segredos de familia

Por mero acaso, ontem, liguei a televisão enquanto, deliciada, tomava no meu quarto o pequeno almoço. Raramente ligo a caixa das mentiras, porque dou ao tempo que estou comigo própria, muito valor. Cada vez mais..

No écran as imagens pareceram-me interessantes e, facto  mais raro ainda, voltei ao principio do filme. O título em inglês WE ONLY KNOW SO MUCH, traduzido, entre nós, por Segredos de Família, relata a vida  de uma constituída por seis membros que vivem juntos, mas cuja particularidade é estarem a passar por estádios muito diferentes da sua existência. No fundo, eles fazem desfilar os sonhos, as preocupações e os arrependimentos de uma certa América contemporânea. Mas o que antes foi um tipo de existência tipicamente americano é, na atualidade, um fenómeno que respeita a todos nós.

Fiquei a ver o filme até ao fim, porque, para quem tenha feito psicanálise, ele é um retrato, por vezes admirável, de um dos grandes problemas do mundo atual. Trata-se da  demência e das formas de que ela se reveste no mundo em que vivemos. E também, como é natural, da consciência que os próprios e os seus próximos acabam por ter dela.

As duas personagens mais velhas , pai e mãe, que vivem com os filhos estão senis. A geração que se segue, está desnorteada e a convivência com os progenitores, começa a fazer-lhes ter dúvidas sobre quem são. Recorrem, cada um por seu lado, aos meios de que dispõem para perceberem que vivem a vida que não querem mas que escolheram. E, finalmente os filhos, a nova geração, percebe que é necessário desfazer todos aqueles laços familiares, para poderem viver a sua própria vida, que nada garante, claro, consiga um modelo melhor, quando baseado, apenas, nos interesses individuais.

É um facto que o individuo se conhece muito mal a si próprio, embora considere justamente o contrário. Aqui, neste drama, isso é evidente. Na trama que se desenrola, normalmente dominada pela a dor, se despoleta algo de melhor, há alguém que sai a ganhar. O problema reside, justamente, no facto de ser pela dor que as pessoas se tentam reconstruir e não pela alegria, a qual, afinal, abre tantas possibilidades, que não exploramos nem aproveitamos, porque o individualismo como forma de existência, só contempla o próprio umbigo.

Quando o filme acabou, lembrei-me de um outro, que vira há pouco tempo, com essa atriz notável que se chama Annette Bening e que conta a história de um velho casamento falhado, no qual só quando este se dissolve é que cada um dos intervenientes. percebe e avalia os reais sentimentos que tem pelo outro. Só que já é tarde...

Estamos todos a atravessar um período, já longo, de incertezas que começam na guerra, nos valores, nas crenças, na saúde e até no amor. A família já não é o que era e os laços de sangue foram trocados pelos laços ideológicos. Os velhos põem -se em lares ou instituições luxuosas, porque ninguém os quer em casa. Os novos lutam para ser gente conhecida e bem paga e para isso usam de todas as formas de guerrilha e os outros, acabam por aceitar a vida que lhes é imposta.

No fundo, ninguém se questiona sobre a felicidade própria. Experimente o leitor listar o que o torna feliz e verá a dificuldade que existe em saber o que ela é, o que ela significa. Normalmente as respostas representam a satisfação dos nossos desejos. Mas será que a felicidade é só isso?!

HSC

4 comentários:

Pedro Coimbra disse...

Essas incertezas foram elevadas à máxima potência com a maldita pandemia.
Ontem um vídeo vitalizou aqui nas redes sociais.
Uma senhora barafustava com dois polícias que insistiam que ela teria que usar a máscara na rua.
E ela dizia que não queria falar com eles, só queria ir dar um passeio.
Depois de tanta reclusão este é o desejo, a ambição, a felicidade, para muita gente.
Dar um passeio sem máscara.
Sobretudo os mais velhos.
Mais tarde surgiram imagens da senhora no hospital acompanhada pelos polícias.
Também ela foi diagnosticada com demência.

Anónimo disse...

🌷

Anónimo disse...


Dra Helena Este texto é um livro aberto sobre um tema que ninguém quer encarar de frente. Onde estão os psiquiatras do SNS? Onde estão os dentistas? Onde estão uma série de especialidades que são necessárias neste país?
Se algum governante tivesse uma mãe ou pai demente perceberia do que eu estou a falar!

Anónimo disse...

Obrigada Drª Helena por tudo o que escreve. Gosto da sua escrita sobre os vários temas que aborda. Ajuda-me a estar menos só. Não vivo só e não tenho qualquer tipo de solidão. Mas por vezes sinto-me só nas minhas incertezas e preocupações. Procuro refletir sobre este "admirável mundo novo". Sobre a humanidade e as sociedades atuais. A pandemia mudou o mundo. E não sei se estamos a conseguir viver e conviver com a mudança.
Receba um saudoso abraço. Tenha muita saúde.
Maria