sábado, 17 de agosto de 2019

Vidas desfeitas à posteriori


Leio que Plácido Domingo terá vindo engrossar a lista dos abusadores sexuais dos anos sessenta/setenta, num enquadramento muito nos limites do movimento Me too.
Já escrevi aqui o que penso destes processos, que se multiplicam trinta ou quarenta anos depois, com julgamentos feitos na praça pública e à luz do que hoje é a nossa forma de viver. Há trinta ou quarenta anos, aceitavam-se comportamentos inaceitáveis, por mais duro que seja dize-lo. 
Isto desculpa quem teve esse tipo de atitudes? Claro que não. Mas logo a seguir vem a pergunta traumática, que é a de saber o que leva alguém ofendido, a calar-se durante quatro décadas. A resposta é sempre a mesma, medo. Ou seja, as vítimas são julgadas com os olhos da época e os pretensos abusadores são julgados com os olhos de hoje. 
A vida profissional e pessoal de Plácido Domingo, à semelhança de tantas outras, está, a partir de agora, completamente liquidada. E eu, que sou mulher, incomoda-me profundamente, que as mulheres só sejam capazes de falar do que lhes aconteceu, quarenta anos depois, agora já sem medo e sem vergonha. Porque não acredito, que estas mulheres que hoje têm família, não sintam vergonha, ao expor publicamente a sua vida privada passada.
Todos os abusadores devem ser punidos pelo que se provar que então fizeram. Não tenho qualquer dúvida sobre isso. Mas que seja a Justiça a julga-los e não a opinião pública, porque há filhos e netos que também merecem ser preservados.
Não sei se o maestro e cantor abusou ou não da sua posição. Apenas conheço a sua história de vida, que não é de desprezar, pelo que trouxe à cultura musical. 
Que o julguem nos Tribunais é o que desejo. Mas também espero, que terminem os julgamentos das pessoas na praça publica. Porque não só arrasam o próprio, como arrastam consigo os filhos - de ambos os lados - que se sentem crucificados por aquilo que não fizeram. 

HSC



13 comentários:

Anónimo disse...

Tal como é importante o diagnóstico para a saúde de alguém, também é importante que sejam conhecidos os comportamentos abusivos a nível social, para que as pessoas os identifiquem.
Conheço mulheres que se separaram e divorciaram, porque já não aguentavam mais, mas só anos mais tarde tomaram consciência de que tinham sido vítimas de violência psicológica, aquilo por que passaram foi violência psicológica.

Anónimo disse...

Mas ele destruiu «vidas» a priori! Podemos imaginar o que é uma mulher (ou um homem) ter o sonho de ser cantora, ter qualidades para isso, trabalhar para isso, e encontrar pela frente o assédio e o abuso de poder do seu diretor, que põe e dispõe, e ser prejudicada na sua carreira (e na saúde) por rejeitá-lo!
As vítimas de abuso adoecem, têm grandes depressões.
E naquela altura de que lhes servia fazerem queixa? A percepção era outra, a vítima ainda era ridicularizada, o agressor protegido (ainda hoje isso acontece, lembremos os juízes do tipo Neto Moura).

Desde sempre pode não existir correspondência entre um grande artista e igual grandeza, como pessoa, do ponto de vista ético. Plácido Domingo internacionalmente reconhecido como tenor (embora há alguns anos, devido à idade só cante em papéis de barítono) casado há 60 anos com uma cantora lírica mexicana que abdicou da sua carreira ao casar, por trás da fachada intocável, fazia a vida num inferno às mulheres que trabalhavam com ele. E o caso era conhecido há décadas porque as cantoras passavam palavra umas às outras, avisando que deveriam evitar ao máximo ficar a sós com ele, aceitar os seus convites para ensaiar.

Podemos até pensar, como agora vem dizer, que se sentia um grande e irresistível sedutor e que tudo era consensual, mas se quando era rejeitado impedia que fossem atribuídos os papéis aquelas cantoras, destruía as suas carreiras, onde está o consenso mútuo?

Ainda bem que hoje as companhias de ópera têm tolerância zero relativamente ao abuso de poder, assédio, discriminação.

Quanto a Plácido Domingo ele já tem 78 anos, já está no final da sua carreira, já teve prémios, reconhecimento. Mas nada perdoa o que fez. E a que propósito vinham agora 9 mulheres falar disto, se não fosse verdade? Falar é importante, dissuade outros de fazerem o mesmo. Quanto aos filhos e netos, eles não fizeram nada, ninguém os pode atingir pessoalmente. A não ser pelo desgosto, mas isso o responsável é o cantor que não merece ser figura prestigiada.

Helena Sacadura Cabral disse...

Anónimo das 12.23
C
Da leitura do seu texto o julgamento está feito. Nem sequer precisa de ser julgado pela Justiça. É esse comportamento que, penso, nos pode levar a grandes injustiças. Nove mulheres queixam-se hoje de assédio. Não o poderiam ter feito quando já não estavam sob a sua alçada? E porquê vir para a praça pública e não ir direta às autoridades competentes? E quem garante a verdade das declarações?
Insisto em que devem ser as autoridades judiciais a julgar. Não o cidadão comum. Tal como são os médicos e não os feiticeiros que se ocupam das doenças.
Essas senhoras devem ter hoje 70 anos. Foi preciso esperar tanto num mundo que mudou de tal forma que podiam ter-se queixado quando tinham 50 anos. Não lhe parece tempo demais? Não acha estranho que todos os casos surjam na mesma altura e só com pessoas conhecidas? Alguém fala de casos de gente comum, que certamente terão existido?
Entristece-me que o não tenham feito no tempo da prova e tenham encoberto Plácido Domingo até agora.

Helena Sacadura Cabral disse...

Estes comportamentos de desconfiança levam hoje os médicos ginecologistas por exemplo a ter um/uma enfermeira ao seu lado enquanto decorre a observação e o mesmo para os urologistas ou proctologistas, criando um enorme desconforto ao paciente!

Anónimo disse...

Como o anónimo das 12.23 prefiro não desacreditar logo as vítimas. As mulheres são, continuam a ser, vítimas de muitos preconceitos, são logo desacreditadas, vistas como oportunistas que só sobem na carreira se for «na horizontal». Depois da investigação se verá. Mas o próprio Plácido Domingo veio dizer que hoje as regras são muito diferentes, que pensava que tinha sido consentido, de certo modo não negou. E os casos, são mais do que as tais 9 mulheres que se queixaram, decorreram durante cerca de três décadas, nem todas terão 70 anos hoje. Tanto mais, que o cantor criou a Operalia onde são ouvidos milhares de jovens de todos os países, para a descoberta de talentos e lançamento de carreiras. A justiça tem deixado impunes demasiados casos, não tem credibilidade, as pessoas não acreditam na justiça. A sensação que as pessoas têm é de que se não vem a público, os casos são abafados. Pode haver injustiças, tanto sendo conhecidos publicamente os casos, como não sendo.

Helena Sacadura Cabral disse...

Caro Anónimo das 15:23
Respeito a sua posição. Mas continuo a confiar mais na Justiça do que nos julgamentos na arena publica, à espera que os leões comam quem lá está. Se não acreditar na justiça em quem acredito.? No seu grupo ou no meu? Ou nas dezenas de outros que possam existir?
Quanto à Operália, os tempos são outros. Antes as mulheres engoliam piropos incríveis. Hoje vão à Policia, Por isso acho que os jovens da Operália, se forem assediados vão à policia que agora os recebe com outras garantias. Mas é preciso apresentar queixa na policia, senão só falam quando ele estiver morto e portanto tarde demais.
Nesta matéria todos os cuidados são poucos...

Anónimo disse...

Só a justiça pode julgar.

Neste caso as instituições optaram por dois critérios- umas cancelaram os concertos, outras mantiveram-nos, até aos resultados da investigação.

Considero mais correcta a manutenção, mas também entendo o cancelamento.
Os casos de abuso de poder estão por todo o lado, nas universidades, nas empresas, na igreja, na família, no desporto, etc.

É difícil chegar lá, mas a atitude a tomar é mesmo apresentar queixa.

Contudo temos de ter em conta que se hoje é mais possível, anteriormente não era assim, como se está a ver com muitos casos que estão agora a aparecer.

A Operália foi fundada em 1993.

Anónimo disse...

HSC agradeço a sua resposta ao meu comment das 12h23.
Não é um JULGAMENTO, é apenas aquilo que penso sobre o assunto, é uma OPINIÃO, como julgamento não tem nenhum valor legal.
Parto do princípio que as 9 mulheres apresentaram queixa às autoridades competentes e não foram apenas ouvidas pela agência noticiosa Associated Press. Concordo totalmente consigo que é necessário apresentar queixa. Mas em Portugal, por exemplo, apresentar queixa é ainda um acto de coragem, porque nos casos de assédio sexual e de assédio moral, é muito difícil apresentar provas, porque é algo como que invisível que afecta de forma individual. Além disso os assédios, quer sexual, quer moral (laboral) não existem no Código Penal, existe apenas a figura Perseguição.

Helena Sacadura Cabral disse...

Anónimo das 17:17

Em 1993 já não havia o medo dos anos sessenta. Por isso creio que se houvesse razões para queixa na Opralia elas já estarão na policia,
É preciso vencer o medo e apresentar queixa. As vezes que forem necessárias, porque sem ela ficamos pelos rumores que são o cancro de uma sociedade.

Anónimo disse...

Um OGRE operático e oh prático!
Tantas damas ali mesmo à mão...muito prático!

Anónimo disse...

Porque é que ele não pagava a profissionais!

Anónimo disse...

Consequências na vítima de assédio - sobressalto, sensação de perigo, desânimo, confusão, ansiedade, isolamento, depressão, náuseas, falta ou aumento de apetite, insónias, pesadelos, cansaço, exaustão, consumo de medicação, tentativas de suicídio.

Anónimo disse...

É claro que ele é culpado, homens em posições de poder sempre se aproveitaram - e aproveitam - de mulheres em posições subalternas. O engraçado é que elas também sempre se aproveitaram e beneficiaram disso, virem agora queixar-se é só ridículo.