segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

CUIDE-SE!

Era um fim de tarde de Outono, num Domingo. Ester vivia há tanto tempo sozinha, que já não distinguia os fins de semana dos dias úteis. Gostava de passear, ora no meio de multidões ora no meio de solitários jardins.

Assim, meteu-se a caminho da beira Tejo e andou até sentir que estava cansada. Um pouco mais à frente, descortinou um banco virado para o rio e sentou-se. Não sabe quanto tempo terá estado assim. Provavelmente terá passado mesmo pelas brasas, admite. 

Voltou à realidade quando uma senhora de idade e boa aparência se sentou ao seu lado e lhe perguntou as horas. Respondeu e ficaram ambas caladas durante algum tempo.

No banco do lado direito um par de namorados tecia o seu rosário de sonhos. A certa altura, a senhora murmurou: 

- ainda não sabem nada da vida

- ainda há gente feliz

- dura pouco a felicidade...

A conversa ficou por aqui. Uma meia hora decorrida a senhora levantou-se e despediu-se. Já em pé exclamou, a sorrir, um amistoso "cuide-se".

Ester ficou ainda mais um pouco. Quando começou a escurecer voltou para casa, não sem antes entrar numa pastelaria e beber um café para re-aquecer. 

Quando ia pagar percebeu. O porta moedas, melhor o porta notas não estava na carteira. No seu lugar, numa espécie de contrapartida encontrou um cartão que tinha impresso a frase " Foi um prazer. Cuide-se!".

HSC

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Desencontros


 Marta teve durante toda a sua adolescência o trauma de ser filha de pais divorciados. Naquela época essa circunstância limitou-lhe os convívios e até as amizades. Era um tempo em que os casamentos se supunham para toda a vida.

Talvez fosse esse facto que a levasse a olhar a carreira como um substituto da família até à sua entrada na juventude e na Universidade. Aí, no meio desses homens e mulheres que batalhavam em pé de igualdade perante as mesmas dificuldades, ela compreendeu que nada a diferenciava dos restantes colegas.

Mas subsistia uma névoa que se manifestava no seu desejo de constituir uma família sólida que nada devesse, jamais, abalar. Foi assim que veio o primeiro e único namoro com um jovem que havia de se transformar no seu marido.

Marta foi mãe de um casal e a sua vida passou a girar entre o emprego e os filhos. O seu parceiro ia dando sinais de que se sentia preterido, mas ela não lhes ligou grande importância. Até ao dia em que se deu conta de que a vida deles como casal havia mudado radicalmente. Nesse momento tentou inverter a marcha dos acontecimentos, mas era tarde. Miguel já havia preenchido o espaço que Marta havia deixado livre.

Seguiu-se o inevitável divórcio que a deixou com a responsabilidade maior de educar dois filhos e a sensação trágica de que perdera, por omissão, o homem da sua vida.

Os anos foram decorrendo e Marta estava decidida a ser uma pessoa diferente se voltasse a encontrar alguém que valesse a pena. Esse dia chegou e com ele, por causa do anterior falhanço, todo um processo de transformação e entrega a esse novo amor.

Todavia, a vida não se escreve por episódios e, ao fim de algum tempo, Marta percebeu que a personagem que dedicadamente encarnava, não era aquela que o seu homem, António, precisava. Isto era tão verdadeiro que, se os seus dois maridos, se juntassem para falar dela, nenhum a reconheceria.

Novo divórcio e uma constatação dolorosa. Quem António verdadeiramente amava e queria era a Marta do primeiro casamento. E o Miguel, eventualmente, poderia ter sido feliz com a Marta do segundo. A vida também é feita destes desencontros...

 

HSC

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Sem vida própria


Há vidas que nunca o chegam a ser, porque decorrem como se fossem as de outras pessoas. Era isto que Teresa, hoje com mais de meio século de vida, pensava enquanto arrumava umas cartas das filhas, agora a estudarem e a viverem no estrangeiro.

Como é que tudo lhe acontecera, quando aos vinte anos sonhava ter uma família e uma carreira? Não sabia responder, porque perdera a noção precisa do momento em que essa viragem se dera 

.Lembrava-se bem, quando a Isabel nascera, da necessidade que sentira de ficar para sempre junto dela e do muito que lhe custou retornar ao trabalho, deixando-a aos cuidados da empregada até ao fim do dia. Quando a Sofia veio ao mundo, decorridos apenas dois anos sobre o primeiro parto, passou a trabalhar em casa, para dar assistência às duas. A decisão foi, sobretudo, sua. A partir daí deixou, de facto, de ter a sua própria vida para se entregar à das filhas

Uma terceira criança havia de aparecer, numa altura em que a vida profissional do Pedro, seu marido, tivera já uma boa progressão. Por estranho que pareça foi, nessa altura, que começou a sentir necessidade de voltar ao trabalho. E, partilhou com o homem com quem dividia a vida, esta sua sensação.

Mas, para sua surpresa, a reação não foi a esperada. A posição que ele atingira na empresa impunha-lhe que estivesse presente numa série de eventos, que não eram compatíveis com carreiras pessoais na família. Ficou triste mas compreendeu que o marido precisava dela e da sua presença. 

Foi assim que, aos pouco, acabou abdicando do seu próprio tempo. E agora, que nem o Pedro nem as filhas precisavam mais desse bem raro, Teresa sentia-se perdida, sem vida pessoal e sem compreender como durante trinta anos se contentara com viver apenas a vida dos seus!

HSC

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O vaso de crisântemos



Joana vivia num meio rural do interior do seu país. Corria quilómetros para aprender a ler, objetivo que já era considerado pelos seus pais como sendo mais do que a vida lhes tinha a eles permitido. 
A sua curta existência tinha sido passada quase sem assentar em lugar fixo, porque o seu pai ia para onde houvesse trabalho de campo. 

Assim, com dez anitos já deveria ter conhecido mais de uma dúzia de terras. E era quase sempre quando começava a fazer amigos que tinha de partir. Foi, portanto, uma criança isolada que preferia os objetos às pessoas. Porque estes, sendo parcos, eram tudo o que possuía de seu. Estava naquela terriola há seis meses e todas as noites olhava para o vaso de crisântemos que havia encontrado quando ali chegou, como se ele fosse a ampulheta do tempo que havia passado e, simultaneamente, daquele que lhe faltaria, para dali sair.

 A planta, cuidada com todo o carinho, estava viçosa e era, de facto, a sua companhia. Todos os dias falava com ela os segredos que as outras crianças falavam com as amigas. Um dia, ao chegar a casa, vinda da escola, o vaso havia desaparecido. Joana correu as redondezas para o tentar encontrar. Tudo debalde. Nunca soube o que lhe tinha acontecido. Apenas sabia que estava agora muito mais sozinha.

 A partir daí os dias corriam tristes e ninguém parecia conseguir compreender o que se passava com ela. Os anos correram e os tempos melhoraram. Joana fez-se mulher. Deixou de rolar de terra em terra. Os pais acabaram, finalmente, por se poderem fixar ali. No seu quarto, junto à janela, está um vazo com crisântemos. Foi a primeira compra que fez, quando arranjou trabalho, apesar de, nessa altura, já contar com algumas amigas!

HSC

domingo, 19 de fevereiro de 2023

João Salgueiro

Entrámos ao mesmo tempo no ISCEF, hoje ISE. Fomos os melhores alunos do nosso curso. E, se por um lado, éramos concorrentes, por outro fomos muito próximos. Guardo muito boas recordações desse tempo e a sua morte deixa-me grande mágoa.
Manteve grande dignidade toda a sua vida e continuava a estudar e dar- nos lições preciosas sobre o estado da nação. Portugal, nos últimos anos ,talvez lhe não prestado o tributo merecido.
Que descanse em paz.

HSC

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O suficiente, mas não demais

Há dias, numa série televisiva que estava a ver, duas mulheres conversavam uma com a outra. A mais velha, tia da mais nova, queria antes de morrer saber como ia o noivado da sobrinha, a quem decidira deixar os seus bens. Queria saber se ela estava feliz.

E, entre sorrisos, estabeleceu-se  entre as duas o seguinte diálogo.
- gostas do teu noivo?
- claro que gosto, tia.
- mas gostas o suficiente ou gostas demais? É que é diferente.
- tia diga-me se o casamento nos dá, de facto, a felicidade?
A tia não chegou a responder-lhe, não teve tempo. Mas eu fiquei a matutar no que ambas, afinal, pareciam precisar saber. É que o amor, quando é excessivo, pode matar a felicidade...

HSC