Apresentar um livro de um autor com o qual nos identificamos muito, não é tarefa fácil. Assim quando o Embaixador Marcello Duarte Mathias me pediu que apresentasse o seu ultimo livro, tive dois tipos de reacção. De um lado, senti muita satisfação de poder falar de um escritor que admiro muito e de quem conheço quase tudo o que escreveu. Por outro lado, temi que a plateia que me esperava pudesse achar estranha a escolha do meu nome para tal tarefa. Julgo que correu bem. E, como várias pessoas me pediram o texto da apresentação, decidi que a melhor forma de falar sobre o livro seria publicar aqui as palavras que, então, disse.
CAMINHOS E DESTINOS
A memória dos outros
Começo por fazer duas advertências para tranquilidade vossa. A primeira
respeita ao hábito que tenho de fazer apresentações curtas, que terei adquirido
em mais de duas décadas de ensino universitário. De facto, creio, mais de quinze
minutos de oratória, levam a plateia a viajar por outros mundos.
Assim, pelo menos desta vez ficarão todos libertos da última moda nesta
matéria, ou seja, três apresentadores seguidos de um pequeno número musical,
como me aconteceu nos últimos eventos a que fui...
A segunda advertência vem do facto de eu gostar muito – nas suas diversas
formas - da escrita do Senhor Embaixador, pelo que as minhas palavras sendo,
espero, lúcidas, podem também ser parciais.
De facto, toca-me o seu olhar, sem excessos, sobre o mundo que o rodeia, mas
sem nunca se privar de exprimir sentimentos; emociona-me o intimismo com que
escreve, sem jamais ultrapassar a barreira da privacidade; surpreende-me a
análise crítica que tece sobre uma série de assuntos que vão da política, à
carreira, à literatura, à defesa da língua e que, por razões várias, constituem
preocupações que também partilho.
Esclarecidas estas duas questões não posso deixar de declarar que só por
muita ousadia da minha parte é que aceitei vir apresentar este livro. Com
efeito, se por um lado contava com a benevolência de quem me convidou, por
outro, admitia ir encontrar um público que pudesse estranhar a escolha do meu nome, pouco intelectual das letras e
sem filiação em correntes literárias.
Gosto muito de escrever, mas a única certeza que tenho é a de que devo à
leitura de certos autores, uma boa parte de quem sou. Mas nunca me apelidei de
mais do que de “escrevinhadora”.
Bem haja pois, Senhor Embaixador, pela confiança que em mim depositou.
Entremos então, na tarefa que aqui me trouxe. A primeira questão que gostaria
de colocar é a de definir o que, para mim, constitui apresentar um livro. Do
meu ponto de vista, o primeiro objectivo é expressar o que sentimos acerca do
seu conteúdo. Para depois tentar descobrir o que as suas linhas acabam por
revelar do autor. E isto, claro, tendo em conta que essa revelação será, por
sua vez, também ela, sempre feita pelo olhar do “outro”, daquele que apresenta.
Ou seja, a apresentação de uma obra envolve, sempre, uma dupla percepção
na qual, escritor e apresentador caminham lado a lado, mas sem que este último tenha
alguma certeza de que aquilo que lobriga desse caminho é mais sobre o autor do
que sobre si mesmo.
Dito por outras palavras, cada um acaba por ver na obra e no escritor,
uma parte de si próprio. E, a meu ver, se alguém aceita dar a conhecer um livro
é porque sente que nesses dois percursos feitos, existem encruzilhadas comuns de que vale a pena falar.
Assim, as minhas palavras são, naturalmente, a consequência daquilo que
no livro mais me impressionou, me tocou, me surpreendeu, num itinerário que,
obviamente, neste caso concreto, tem múltiplas veredas.
Para quem, como eu,
conhece a escrita diarista de Marcelo Mathias, encontra aqui uma prosa que,
numa primeira leitura, parece diferente, até porque nos ensaios a tendência não
é intimista. Mas à medida que nos embrenhamos nos vários textos, acabamos por perceber
que esse lado personalista continua bem vivo nas análises feitas.
São muito diversos os
temas que preenchem as páginas deste volume de crónicas e ensaios. Livro que também
é um determinado retrato do nosso tempo, feito por entre escritores e
políticos, através da memória de uns e do percurso de outros.
Retratos e memórias
que, confesso, nalguns casos, me são muito familiares, mercê de duas
circunstâncias. Uma, o facto pertencer à mesma geração de quem escreve este
livro. Embora não tenhamos tido as mesmas mundividências, a sociedade que nos
rodeou foi a mesma. Outra, a circunstância de ter nascido no seio de uma
família que não só se interessava e discutia uma parte significativa das
temáticas que aqui se abordam, como sempre incentivou os mais novos a nelas
participarem.
Daí que, percorrer
as páginas lindíssimas sobre Biarritz e sobre o esplendor de Sophia, ou ler os
comentários sobre o livro Equador, ou sobre as Cartas de Amor de Pessoa a
Ofélia –cuja utilidade ainda hoje não percebi -, me tenham feito sentir uma
proximidade quase fraterna, já que me recordaram as animadas conversas com o
meu irmão mais velho, também ele Embaixador.
Não faltam nestas
folhas apreciações profundas sobre alguns nomes literários como Tabucchi, Torga,
Eugénio Lisboa, Almeida Faria, ou Vasco Graça Moura, para só citar estes, de
quem sou mais próxima ou cuja leitura continua mais fresca.
Ler as palavras de
e sobre Graça Moura acerca da identidade cultural da Europa não deixa ninguém
indiferente. Nem eu própria, que continuo a sentir que a minha identidade é só
uma, a de ser portuguesa e de dificilmente admitir viver noutro lugar que não
seja Portugal.
Igualmente presente
está a visão do diplomata acerca de alguns colegas de carreira e da forma como
vêem a Diplomacia. Aqui, perdõem-me todos os outros, mas escolho decididamente
fazer referência a António Pinto da França, personagem fascinante e um homem de
quem se diz que tem relógio e tem tempo, mas desconhece a urgência. A sua
permanente curiosidade permite-lhe viver em osmose com o tempo dentro e fora
dele, algo que faz lembrar um fundo quase oriental. Não é frequente encontrar
alguém assim!
Julgo, enfim, poder
dizer que estamos perante um livro, que fala de lugares e de países – Biarritz,
Goa, India, França, América – mas também de pessoas, sejam elas políticos,
escritores, pensadores ou diplomatas.
Trata-se, a meu ver, de um livro, com uma acentuada marca francófona – que bem que sabe aos que, como eu, são francófilos – e se ocupa na política de personagens que vão de Giscard a Balladur ou a Sarkozy - e de escritores como Malraux, Aragon, Drieu La Rochelle ou Camus. De caminho, percebe-se como estes homens enriqueceram a França e e como a pátria fez deles os seus heróis contraditórios.
Trata-se, a meu ver, de um livro, com uma acentuada marca francófona – que bem que sabe aos que, como eu, são francófilos – e se ocupa na política de personagens que vão de Giscard a Balladur ou a Sarkozy - e de escritores como Malraux, Aragon, Drieu La Rochelle ou Camus. De caminho, percebe-se como estes homens enriqueceram a França e e como a pátria fez deles os seus heróis contraditórios.
Permitam-me aqui uma
pequena anotação sobre esta família de notáveis diplomatas. A França está mesmo
no seu ADN e não é certamente por acaso que o livro tem essa inclinação
francesa que referi.
É que três gerações sucessivas
serviram Portugal naquele país. O avo Marcello foi embaixador em Paris em duas
longas temporadas; o pai Marcello - autor deste livro - foi embaixador na
UNESCO que tem sede em Paris. E o neto Marcello, outro diplomata por quem nutro
uma grande ternura, a caminho de França vai.
Por coincidência ainda se
deu o caso de Marcello pai ter servido na UNESCO ao mesmo tempo que o seu irmão
Leonardo chefiava a missão bilateral em Paris. Três gerações diferentes: o
mesmo apelido; o mesmo patriotismo; a mesma vocação; o mesmo destino!
Et cela va sans dire, todos
tão diferentes, todos tão interessantes!
E se isto não fosse já muito, seguem-se páginas preciosas sobre as epístolas trocadas entre Saint-John Perse e Calouste Gulbenkian, ou a correspondência entre Roosevelt e Estaline, tão reveladoras do período político que se aproximava.
Impossível citar todas as peregrinações interiores de outros, de que o autor se ocupa ou entrar no detalhe sobre os ensaios que este livro contem. A escolha dos textos é um labirinto conduzido, no fundo, pelo trabalho de quem, há muitos anos, pensa sobre o que os outros pensam, sem contudo, se esquecer de pensar sobre si próprio.
E se isto não fosse já muito, seguem-se páginas preciosas sobre as epístolas trocadas entre Saint-John Perse e Calouste Gulbenkian, ou a correspondência entre Roosevelt e Estaline, tão reveladoras do período político que se aproximava.
Impossível citar todas as peregrinações interiores de outros, de que o autor se ocupa ou entrar no detalhe sobre os ensaios que este livro contem. A escolha dos textos é um labirinto conduzido, no fundo, pelo trabalho de quem, há muitos anos, pensa sobre o que os outros pensam, sem contudo, se esquecer de pensar sobre si próprio.
É por isso que a
nossa memória é, também, sempre um
bocado da memória dos outros e a nossa revolta,
mais ou menos contida, resulta uma amálgama entre a que sentimos e a dos que
nos rodeiam, pese embora estes últimos possam, até, nem ser pessoas de quem
estejamos próximas.
Confesso que os
primeiros textos que li foram aqueles que considerei terem laivos mais
pessoais. Explico-me melhor.
Gosto, como já
disse, da escrita intimista, de tipo diarista, na qual considero o Embaixador Marcello
Mathias um autor verdadeiramente especial. Assim, comecei por Biarritz, essa
estância de que o meu Pai tanto falava e a que, mais tarde voltaria tantas
vezes. Nestas suas linhas está tudo o que o meu olhar tinha, outrora, registado.
Como também está, uma outra Biarritz, que só o autor conheceu, e cuja partilha
me encantou.
Não menos
interessantes e surpreendentes são essas linhas das Memórias femininas,
memórias cruzadas, em que tão subtilmente se recorda a frase de Louis
Scutenaire que afirma que “o homem olha, a mulher vê”, num paradigma com o qual
me identifico plenamente.
Há, aliás, em todo
o livro a marca de um reconhecimento do feminino - ao qual eu jamais serei
indiferente - que está presente mesmo quando não se fala dele.
Quase no final do livro o
autor escreve um ensaio sobre esse estranho ano de 1938 em que nasceu.
Recorrendo à belíssima definição do professor Adriano Moreira, 1938 foi 'tempo de vésperas'. Os homens ainda
viviam em paz mas os lúcidos já pressentiam que a guerra - a horrível II Grande
Guerra - estava ao virar da esquina. Este ensaio é sobre tudo o que vai acontecendo
enquanto o essencial ainda não aconteceu.
Às vezes receio - a minha
idade avisa-me –, que as loucuras do mundo de hoje não estão longe de um
pressentimento sombrio. Espero não ter razão!
No fundo, e repito-me, o que fascina neste Caminhos e Destinos é
o fio condutor que une a diversidade de deambulações entre a critica, a
crónica, o ensaio e que nos leva, afinal, a percorrer um caminho que, sendo dos
outros é, simultaneamente, também nosso.
A Memória dos outros
é o fulcro deste livro. Só é possível falar dela, porque ela, ou melhor, elas, representam uma pluralidade de recordações que
constitui um perfil da sociedade portuguesa, suas gentes, ambientes e costumes
Como é dito no
prefácio deste livro ‘escrever é ir ao encontro do que nos comove, intriga ou
indigna, de tudo aquilo que afinal nos chama porque nos é próximo ou, pelo
contrário, suscita a nossa curiosidade porque se filia num passado feito de
outros cenários e recordações. Em definitivo, toda a memória é sempre memória
dos outros.’». Foi ela - a minha
e a dos que me rodeiam - que aqui encontrei. E que, como sempre, me comoveu e
deixou presa da primeira à ultima folha destes CAMINHOS E DESTINOS.
HSC
7 comentários:
Sem querer tornar-me repetitiva Doutora Helena não nos prive dos seus escritos.
Se foi a escolhida do escritor, ele lá sabe porquê e nós também.
Parabéns
Maria Isabel
Belo e sentido texto Helena.
Vou ler!
A sua apresentação despertou-me a curiosidade. Não conheço o autor, mas vou comprar e ler. Deve ser muito interessante.
Comprei o livro e fiz a leitura de acordo com o que me suscitou mais interesse. Estou a meio e a gostar muito. A sua apresentação corresponde exactamente ao que estou a sentir. Sou homem e acho as suas palavras muito justas.
🌷
Que extraordinário texto de apresentação! Claro que me abriu mais o apetite de o ir comprar para ler já.
Acabei de assistir na tv24, às 18 horas, ao discurso de Macron de homenagem às vítimas do atentado de Nice (presentes Hollande, Sarkozy e Príncipe Alberto). Um arrepio e o sentido de Estado, à francesa, de que gosto muito e a minha amiga também. Não é só a Literatura, o Cinema, a Pintura. Quando eles dizem «la République», sejam de direita, ou de esquerda, não é em vão.
BOM DESCANSO para si e seu querida Filho!
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