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28 de Janeiro a Farmacêutica Roche promoveu um evento denominado "Inspired" que reuniu cerca de cento e quarenta médicos pneumonologistas e oncologistas
do Pais e que se organiza já há mais de 10 anos, tendo em 2017 tido a sua a 11ª
edição.
Eu
assumira o compromisso de encerrar este encontro e foi quase por milagre que
cumpri a promessa, tal a série de acontecimentos negativos que, entretanto, se
foram desenrolando... Mas cumpri.
Entretanto
recebi várias mensagens a pedirem-me o texto e começou a ser difícil responder
a todos. Então decidi publicá-lo. Aqui o têm.
Saudade
Todos sabemos que, um dia, a maioria de nós irá
separar-se. Sentiremos saudades de todas as conversas que acabámos por não ter,
das descobertas que fizemos em conjunto, dos sonhos que sonhámos, dos muitos
risos e momentos que compartilhamos e até, quem sabe, das lágrimas que também
chorámos.
Saudades do companheirismo então vivido, das angústias por
que passámos, das vésperas dos finais de semana sozinhos, dos finais de ano em
que acreditávamos que a vida seria sempre assim, feliz. Saudades, talvez, quem
sabe, porque sempre acreditámos que o amor e as amizades se fizeram para ser
eternas.
Mas a verdade é que uma decepção pode diminuir um amor que
parecia ser enorme e uma ausência pode aumentar um amor que parecia ser frágil.
Assim, torna-se difícil conviver com este tipo de
elasticidade afectiva na qual, aos nossos olhos, as pessoas se agigantam ou se
encolhem e em que o nosso julgamento é feito não de escalas métricas, mas de
acções e reacções, de expectativas e frustrações.
Diz a sabedoria popular que tudo na vida tem dois lados.
Um bom e outro mau. Embora esta visão dependa do modo como olharmos as
situações será difícil não considerar a saudade como um sentimento ambíguo.
É verdade que também se diz que ela constitui a prova de
fogo para saber se algo ou alguém terá valido a pena traduzindo, afinal,
suprema ironia, a dualidade de que “sentir a falta” poderá ser simultaneamente
bom e ruim.
Senão vejamos. Saudade é amar um passado que nos magoa no
presente. É uma felicidade retardada. É sentar numa cadeira e relembrar
acontecimentos que nos tornaram felizes ou emoções que nos terão feito sofrer.
É o amor que ainda não foi embora, embora a pessoa amada já o tenha
feito. É imaginar onde alguém deve estar agora, saber se ainda gosta do prato
preferido, se chorou ou não com o nosso afastamento.
E, quando a saudade não cabe mais no peito, ela acaba por
se materializar nas lágrimas que não sendo de tristeza, nem tão pouco de
alegria, transbordam dos nossos olhos.
Sentir saudade é ter a ausência sempre perto de nós. É
mudar radicalmente a nossa rotina, frequentar lugares que não conhecíamos, ter
dias mais compridos, ter tempo para os amigos, para os vizinhos e para a
família. A saudade é a inconfortável expectativa de um reencontro, que às vezes
é tão grande, que não é mais um sentimento, porque a pessoa se torna saudade. A
saudade só não mata, porque também tem o prazer da tortura.
É viver para encontrar o que se perdeu, sorrir com os
lábios tendo o coração sufocado. É perceber que apesar de ela ser feita para
doer, às vezes também é o meio mais eficaz de enxergar o quanto amamos alguém,
no passado ou mesmo no presente. Deste modo, ela é capaz de agregar opostos,
como a tristeza e a felicidade e transformar certos momentos da nossa vida em
algo de profundamente ambíguo.
Todavia há quem admita não ter saudades de nada,
independentemente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de um
tempo mais feliz ou menos feliz.
Saudades de nada. Nem mesmo de quem
morreu. Porque, dizem, de quem morreu o que se sente é a falta, o prejuízo da
perda, a ausência. É a vontade da presença, não no passado, mas na actualidade,
no tempo presente. É querer tê-los aqui, consigo, agora. E enfatizam que voltar
atrás nunca, nem mesmo com eles. Poderá parecer estranho, mas talvez
corresponda a uma visão de que a vida é um caminho que se tem de fazer, uma
obrigação de que é preciso prestar contas. No fundo é uma dívida que se vai
pagando todos os meses, todos os dias.
Entalar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão
dói. Torcer o tornozelo dói. Uma bofetada, um soco, um pontapé, doem. Dói bater
com a cabeça no canto da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra
no rim. Mas o que mais dói é a saudade que sentimos de um irmão que mora
longe, de uma cachoeira onde nos banhámos na infância, do gosto de uma fruta
que não se encontra mais, do pai que já morreu, de um amigo imaginário que
nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade, afinal, de nós próprios, quando
se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Todas estas saudades doem
imenso.
Se pudéssemos graduar esta malfadada dor, arriscaria dizer
que a saudade mais dolorosa é a saudade de quem se ama. Saudade da sua pele, do
seu cheiro, dos beijos trocados. Saudade da presença, e até da ausência
consentida, em que embora as pessoas não se vejam, sabem onde o outro se
encontra e têm a certeza de que se voltam a encontrar.
Quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que
ninguém sabe como deter, porque saudade é, também, justamente, não saber.
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos,
não saber como encontrar tarefas que nos parem o pensamento, não saber como
conter as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um
silêncio que nada nem ninguém consegue preencher.
Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda
assim, continuar a sofrer.
Há pessoas que confundem os sentimentos de nostalgia e
saudade, porque pensam que são a mesma coisa. Não são. Nostalgia dói mais do
que saudade, é como o fim do dia, em que a única saída é a noite.
A saudade suporta-se de forma inquietamente, mas tem cura.
A nostalgia é lembrar, após alguns anos, um certo momento, que às vezes até se
repete, mas sabermos que já não é a mesma coisa. Saudade é quando o ser amado
se foi embora, mas o amor ainda ficou. Nostalgia é quando o amor também se
foi...
Saudade é o que sentimos quando deixamos a casa dos pais e
vamos morar sozinhos, em qualquer canto do mundo. Nostalgia é quando nos
lembramos do tempo em que esses pais jogavam bola ou brincavam connosco...
Sente-se saudade da avó, que mora longe e cada vez que a
visitamos nos prepara um monte de comidas gostosas. Sente-se nostalgia quando
já não se tem a avó, mas ainda sentimos o gosto das guloseimas que ela fazia...
É saudade que sentimos da nossa casa quando viajamos e
ficamos um tempo fora. Mas é nostalgia lembrarmo-nos de tudo o que vivemos ali,
na nossa casa abandonada...
Saudade a gente pode ter de um brinquedo, de andar de
bicicleta. Nostalgia é lembrança de como era simples e feliz a nossa infância...
Saudade é um sentimento urgente, nostalgia não tem outra
solução que não seja conformarmo-nos. Saudade é a ausência provisória de
alguém, nostalgia é a ausência eterna de um momento.
Esta é a catarse de que falei no início. Aquela que
constitui a explosão em palavras daquilo por que se poderá ter passado. Agora
vem a pergunta de como conviver com tudo isto.
Creio que será permitido a toda a gente guardar uma leve
tristeza, e também uma lembrança boa. Que não será proibido confessar que, às
vezes, se tem saudades. Nem será odioso dizer que uma separação dolorosa nos
traz, ao mesmo tempo, um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego e um
indefinível remorso ou um recôndito despeito.
E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se
perderam, porque ficaram na nossa vida, guardados no nosso coração. E que a
lembrança deles, se por um lado nos faz sentir maior a nossa solidão, por outro
lado permite-nos compreender que essa solidão ficou menos infeliz.
Julgo que foi assim que terei diariamente conseguido
viver, primeiro sem a mãe e depois sem o filho que partiu. Na minha casa as
fotos de momentos mais felizes e menos felizes encontram-se por todo o
lado. Os da alegria e os da tristeza. Porque a vida é isso mesmo, e eu não
pretendo apagar o meu passado, nem nostalgicamente ficar sua prisioneira. O que
quero é que as boas saudades do futuro sejam possíveis, porque tive,
justamente, o meu passado!
Lisboa, 28 de Janeiro
de 2017 Helena Sacadura
Cabral