sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

UMA HIPOTÉTICA VERSÃO

Dizem que Eça de Queiroz – esse mestre que punha personagens a conversar como se estivessem numa ceia de paródia e fina ironia – foi convidado para um “upgrade imobiliário” lá para os lados do Panteão.

Tentem imaginar o grande Eça, que passara a vida a limpar as teias de aranha do Portugal conservador, a ser carregado em pompa (e com alguma circunstância) para o Panteão, enquanto meia dúzia de críticos literários discutem se ele teria ou não aprovado a mudança de residência. Afinal, este homem que adorava descortinar a hipocrisia dos salões, acaba alvo de uma mudança por decreto solene?

Na chegada, os “vizinhos” do Panteão queixam-se do novo morador, que passou a noite toda criando personagens para a próxima obra (dizem que um romance de fantasmas ao estilo “A Cidade e as Serras, versão assombrada”).

Eça, sem se acanhar, explicaria com ar de conde intelectual: “Sabem? Eu sempre escrevi até altas horas. Culpa do café e do vício em encontrar as contradições humanas.”

A comitiva oficial, por sua vez, teria caprichado no cerimonial: flores, discursos, cânticos e, claro, uma pequena fanfarra a tocar o hino da pontuação correta. Alguém comentou ao microfone: “É uma honra receber Eça de Queiroz em todo o seu esplendor.” E o eco do Panteão devolveu o nome “Quei—roz” com dois “erres”, não fosse a pátria passar por um vexame fonético.

Depois do primeiro aplauso, um beato confuso, sussurrou: “Espera aí… o homem que escreveu ‘O Crime do Padre Amaro’ não vai arranjar conflitos com o vizinho monsenhor do outro corredor?” Ao que Eça, se pudesse responder, diria com a sua fleuma: “Nada como um bom enredo para movimentar as páginas da eternidade!”

No fim da cerimónia, uma leitura de excertos de “Os Maias” encheu o ambiente de saudade e gargalhadas – afinal, sarcasmo fino nunca fez mal a ninguém (ou quase nunca). E assim ficou registado mais um capítulo da história literária. Eça de Queiroz, finalmente instalado em nova morada, talvez a escrever crónicas da vida eterna, sempre pronto a apontar, com sorriso irónico e caneta afiada, as curvas e contracurvas do nosso (eterno) retrato social.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

PESSOAS COM LUZ

Costumamos dizer que existem pessoas que parecem carregar uma luz interior tão intensa que, mesmo sem disso se aperceberem, iluminam o caminho de quem está ao redor. O seu brilho não vem de algo superficial, nem se limita a sorrisos ou palavras de incentivo. Transborda em gestos sinceros, na empatia natural e na forma serena de se relacionar com o mundo. São indivíduos que acolhem, compreendem e enxergam a beleza nas pequenas coisas do dia a dia.

O que torna essas pessoas especiais é a capacidade de confortar e inspirar sem julgar. Elas reconhecem que cada ser humano enfrenta as suas próprias batalhas e se abrem para ajudar, sem esperar nada em troca. A luz que carregam não se manifesta apenas na alegria, mas também na serenidade em momentos difíceis. E, mesmo quando atravessam momentos difíceis, elas seguem fortes, guiadas por um sentido de propósito que ultrapassa o entendimento comum.

Ter alguém assim por perto é um presente. É perceber a importância de compartilhar palavras de carinho, um abraço aconchegante ou olhares de compreensão. Essas pessoas com luz lembram-nos, diariamente, que é possível transpor barreiras e, principalmente, que a esperança se fortalece, quando encontramos força uns nos outros.

 

OLHOS NOS OLHOS

Estrela nos Top das livrarias

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Oração pelos amigos

Obrigado, Senhor, pelos amigos que nos deste. Os amigos que nos fazem sentir amados sem porquê. Que têm o jeito especial de nos fazer sorrir. Que sabem tudo de nós, perguntando pouco. Que conhecem o segredo das pequenas coisas que nos deixam felizes. Obrigado, Senhor, por essas e esses, sem os quais, caminhar pela vida não seria o mesmo. Que nos aguentam quando o mundo parece um sítio incerto. Que nos incitam à coragem só com a sua presença. Que nos surpreendem, de propósito, porque acham mal tanta rotina. Que nos dão a ver um outro lado das coisas, um lado fantástico, diga-se.

Obrigado pelos amigos incondicionais. Que discordam de nós permanecendo connosco. Que esperam o tempo que for preciso. Que perdoam antes das desculpas. Essas e esses são os irmãos que escolhemos. Os que colocas a nosso lado para nos devolverem a luz aérea da alegria. Os que trazem, até nós, o imprevisível do teu coração, Senhor.

Cardeal José Tolentino de Mendonça

sábado, 4 de janeiro de 2025

ADEUS


No último dia do ano, tudo parecia envolto num véu silencioso. As ruas estavam enfeitadas com luzes coloridas, preparadas para a festa que nasceria à meia-noite, mas dentro de mim havia uma sombra que não se dissipava. Duas cadeiras vazias ocupavam meu pensamento, lembrando-me de que nem todas as celebrações são feitas de alegria. Dois amigos se foram tão repentinamente, e o eco dessa perda preenchia cada canto da minha memória.

Penso neles como se ainda estivessem do outro lado da linha telefônica, prestes a me chamar para uma última conversa. Fico tentando me segurar nas lembranças que tenho: as piadas fora de hora, a cumplicidade silenciosa, a forma como soubemos dividir o peso das angústias sem julgamentos. Agora, a ausência deles retumba em mim, misturada com o barulho de fogos e música que tenta empurrar o ano velho para longe.

Sempre achei que o fim de cada ano trazia a promessa de renovação, mas desta vez, sinto como se parte de mim também tivesse partido com eles. Vejo as pessoas brindando, abraçando-se, desejando felicidade; e eu, suspensa entre o luto e a saudade, tento conformar-me na esperança de que existem laços que vão além do que os olhos podem ver.

Agora, quando olho para as estrelas no céu escuro, penso que podem ser eles, me observando de algum lugar onde as mágoas terrenas não chegam. Encontro algum consolo nessa imagem, mesmo que seja apenas um vislumbre do que poderia ser. Fecho os olhos e agradeço por tê-los conhecido, por terem feito parte dos meus dias com seus sorrisos e suas histórias. E, nesse instante, apesar da dor latente, sinto a gratidão aquecer meu peito, pois cada despedida carrega, de alguma forma, a herança do amor que deixamos nos corações que continuam a bater. Adeus, Adília Lopes. Adeus, João Lencastre.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A última badalada

Um fio de luz atravessa a noite, rasgando o silêncio em que a alma se encontra naquele último suspiro do ano. Há um instante em que tudo parece suspenso: o tempo dobra-se, e cada batida do coração carrega o peso dos meses que ficaram para trás — alegrias, dores, lembranças adormecidas. Nessa fronteira tão subtil, sinto-me como se dançasse na beira de um abismo, mas sem medo de cair: apenas a plenitude de estar viva, ainda que a vida seja feita de incertezas.

Fecho os olhos para escutar o meu interior. Entre as promessas que fiz para mim, carrego também as que quebrei. Percebo, contudo, que é nessa humanidade falhada, que encontro potência para recomeçar. O Ano Novo chega como uma brisa que afaga o rosto, carregando a possibilidade de ser, de criar, de sentir. E então, respiro fundo. Deixo o pulsar do presente lembrar-me de que cada segundo é um convite a abrir portas, a acolher o desconhecido, a renovar-me. Quando abro os olhos, não vejo apenas o calendário mudar. Vejo-me a mim mesma a entrar num novo ciclo, confiante de que renascer é um verbo que se conjuga todos os dias.