Não sou jurista. Não tenho filiação partidária. Não aprecio este governo. Mas sou economista e gosto de compreender - dentro das minhas capacidades profissionais - as decisões que são tomadas e, sobretudo, as consequências que delas advêm.
Tenho andado, por isso, envolvida na apreciação dos últimos "chumbos" do Tribunal Constitucional - ainda estamos, eventualmente, à espera de mais dois sobre matérias em ponderação - tentando ler não só o que dizem os constitucionalistas, como o que dizem os economistas. Várias leituras e diversos pontos de vista são, a meu ver, o melhor meio de formar uma opinião desapaixonada. Assim, hoje decidi postar aqui um longo artigo de opinião de Miguel Cadilhe, publicado há dois dias no Jornal de Notícias, que tem "uma" visão serena e didáctica sobre a matéria em causa. Aqui fica.
Os meios do
Estado e os fins da Constituição
A fantástica pintura de Batarda, feita tapeçaria, que justamente se
tornou imagem de marca do Tribunal, é uma alegoria, é talvez uma metáfora, é um
enigma. Cada um vê a seu modo.
Por mim, vejo embaraços, vejo o emaranhado dos acórdãos do Tribunal,
deste último, sobretudo, que é quase impenetrável. Vejo o enredamento de que
falava o pintor: "Muitas linhas, folhas escritas, códigos, códices,
calhamaços, cartapácios e quantidade ruidosa de livralhada". A livralhada
agora desabou sobre o Governo. Novamente.
Os meios escassos do Estado...
No estudo da economia, cedo se aprende um elementar
postulado: meios escassos, fins múltiplos. É de base empírica. E está
ligado ao magno problema da boa ou má afectação de meios, privados ou públicos.
Há muitos anos, havia a "Lei de Meios". Era
assim: a Assembleia Nacional aprovava uma lei genérica que
"autorizava" o Governo a fazer tudo: concentrar o poder de definir e
executar a política orçamental, os impostos e as despesas públicas, proceder
como único órgão de soberania verdadeiramente mandante, ditar o papel do Estado,
as suas funções e regimes, e o modo de os desempenhar. Vigorava a Constituição
de 1933, Salazar estava em longa viagem, democracia não havia, eleições não
eram livres, Parlamento era como que um recanto governamental. O Estado estava
submetido à "ditadura financeira", após uma rota de perdição que
vinha da I República... Mas voltemos à "Lei de Meios". Meios? Tal e
qual. O nome destacava, a meu ver bem, a questão dos "meios", não a
questão dos "fins". Não se chamava, mas poder-se-ia ter chamado: lei
de fins... Ou lei de fins e meios... Mas não. Por alguma razão se
chamou "Lei de Meios", quer dizer, lei de impostos, taxas,
receitas patrimoniais, etc., e dívida. Razão de nome que, suponho,
era substantiva mais do que formal. Razão que hoje tem grave acuidade quando
assistimos à derrocada pré-troikiana dos "meios" (.../2011), à
subsequente dureza troikiana dos "meios" (2011/14) e ao
continuado rigor pós-troikiano dos "meios" (2014/...).
Os fins abundantes da Constituição...
Quando escrevi um livro sobre o peso e a reforma do
Estado, em 2005, percorri o extenso texto da Constituição em busca de uma
alusão à questão dos "meios", mas não vislumbrei uma frase, uma
palavra. Nem sequer um implícito toque entre normas tão ávidas como as do
sistema fiscal e as do Orçamento do Estado (artigos 103.0º a 106.0º). Em 2013,
na reedição do livro, confirmei que a Constituição carrega o Estado de funções
mas, "...no outro prato da balança que é o das finanças públicas, não
encontramos adequados meios, travões, temperanças. Não vemos algo que diga a
governantes, burocratas e juízes qualquer coisa como, por exemplo: o Estado
fará tudo isso, porém fá-lo-á com regra, peso e medida, em conformidade com
sustentáveis finanças e com o crescimento da economia.". Deixe-me o
leitor dar o exemplo do artigo 105.0º-4 da Constituição. Diz assim: "O
Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas(......)".
Repare-se, não diz: O Orçamento prevê as receitas e, em função destas, prevê
as despesas. O subconsciente da Constituição põe o carro à frente dos bois,
a canga é a dívida.
O Tribunal Constitucional...
O acórdão do Tribunal desabou sobre o Governo. O
Tribunal terá, por certo, alguma razão. Todavia, recuando no tempo, não ouvi o
Tribunal bradar, posso estar enganado, quando deslizávamos para a dita
derrocada de 2011. Não o ouvi sobre o excesso da despesa, frente aos
"meios". Ter-lhe-ia ficado bem o brado (a par do Tribunal de Contas,
diga-se). Poderá o Tribunal porventura contrapor objecções do tipo
institucional, ou de estatuto, e do tipo constitucional, ou de letra da lei
fundamental (que não de espírito). Tais objecções não me pareceriam
apropriadas. E adianto algumas observações a partir dos artigos 221.0º a 224.0º
da Constituição, sobre o Tribunal, e os artigos 277.0º a 283.0º, sobre a
fiscalização das constitucionalidades.
1.ª observação: Ao logo de tantos anos, não foi o
Tribunal requerido a pronunciar-se, ou não se interpelou a si mesmo (o resto é
processual), sobre a viabilidade, sim, digo a "viabilidade
constitucional", das funções e dimensão do Estado? Sobre a relatividade
entre a grandeza dos "fins" e a escassez dos "meios"? Sobre
se a tendência da despesa e dos "fins" se compaginava com o
lado dos "meios", a carga fiscal e a dívida? Sobre se essa tendência
era sustentável?
2.ª observação: Estando a questão dos
"meios" absolutamente omissa da letra da Constituição, não podia e
devia o Tribunal considerar que ela está, tem de estar, omnipresente no seu
espírito e na sua inteligibilidade? De outro modo, não teremos de concluir que
a Constituição estabelece um quadro de gestão financeira da República que,
sendo insensível aos "meios", é um quadro anti-inteligência?
3.ª observação: O Tribunal não podia e devia
fiscalizar a constitucionalidade das leis do OE cujos défices (de
"meios") feriam normas de tratados europeus, como o Pacto de
Estabilidade e Crescimento, o de 1997 e o de 2005? Ou das leis do OE que, anos
a fio, exibiam desrespeitos pela LEO, Lei de Enquadramento Orçamental, que é
uma lei importantíssima de valor reforçado? Não entendeu o Tribunal que, se a
LEO e a sua lei de estabilidade orçamental tivessem sido devidamente
aplicadas, muito provavelmente não teria ocorrido a derrocada de 2011? Como se
explica que a LEO tenha tido uma dúzia de anos de vigência pouco assistida e
pouco praticada?
O Governo...
Observo a serenidade do primeiro-ministro perante o
desabamento. Faz bem. Dá sinais de quem terá, por certo, alguma razão. Todavia,
para lá da argumentação especializada do Tribunal, que é agreste de ler, e para
lá dos pareceres técnicos do Governo, que desconheço, e para lá da pesada
herança que Sócrates entregou a Passos, pergunto: em que é que o Governo não
esteve bem? Primeiro, em reaparecer sem soluções "estruturais", isto
é, integradas, permanentes, autenticamente reformistas, no domínio das funções
e regimes do Estado (o Tribunal avisara...). Segundo, em reincidir nos cortes
de certas despesas, cortes ditos temporários mas que aparentam uma
"reserva mental" política, uma premeditação de conversão em cortes
definitivos quando der jeito (o DEO 2014/18 jura promessas de anulação dos
cortes de salários e pensões, mas soa a eleitoralismo). Terceiro, em afrontar o
Tribunal com essas repetições.
De resto, os políticos portugueses e os responsáveis institucionais,
incluindo os juízes, ainda têm muito a fazer em prol da qualidade das
instituições que têm por missão vigiar as finanças públicas.
HSC
19 comentários:
Qualidade das instituições: infelizmente o que nos falta.
Cada vez entendo menos de políticas, sobretudo as atuais. No meio de tudo isto, há uma coisa que gostaria de ver ao natural, e que era: No final do mês não serem creditadas as contas de vencimentos dos juízes do T.CONS por não haver "matéria prima" disponível...
Boa tarde Helena,
não gosto de politica, reconheço que o país não está bem mas creo que já teve pior, com o seu positivismo e o de todos vamos ter esperança que tudo melhor para todos, não só para alguns!
Que bem me faz ouvi-la...tenho aprendido tanto consigo!!
Ontem bebi cada palavra sua nesta entrevista:
http://www.youtube.com/watch?v=1qrm6l5FXQk
Um beijinho
Carla
Perdoe-me... a serenidade de quem? do primeiro ministro? bem, quem escreveu isso deve estar a brincar.
A maior piada disto tudo é que com os cortes dos ordenados das pessoas, neste caso dos funcionários, ninguém quer saber. Ora se querem, não lhes dói. Muito lamento que continuem a querer que só alguns é que devem assumir as dívidas. Parece que se esquecem que a moeda vale o mesmo para todos. os 800 euros que ganho no publico valem o mesmo que no privado. E não venham com histórias do emprego para a vida porque eu sou contratado a termo.
Diz o texto 'observo a serenidade do primeiro-ministro'. Qual ministro? serenidade? ou este texto não é de agora? só pode. :-)
Uma crítica subtil ao TC, na onda do governo, embora, sem o mesmo estrondo. O governo faz o que pode e sabe, coitado e o TC é bandido mau que atrapalha. Miguel Cadilhe é um homem do PSD, um ex-ministro do Cavaco Silva. Achei e acho graça a essa da “derrocada de 2011 (ou “pesada herança de Sócrates”)”. Não ponho em causa a situação que nos foi deixada em 2010/11, mas, impõe a honestidade política que se analise as causas (como, por ex. A posição da Comissão europeia na altura, etc). Mas, o mais “curioso”, da parte dos Cadilhes desta vida e de que os apoia, é esquecer a derrocada de 2012/13/14, com uma dívida pública face ao Pib muito superior ao tal passado recente (Sócrates entre os 89% e este governo cerca de 132%!). Assim como os números de desemprego, de empresas a fechar (mais em 3 anos do que nos 6 de Sócrates!), etc. Para além dos níveis de pobreza, queda do consumo e tantas outras desgraças provocadas por este inqualificável governo – e incompetente – que Cadilhe e quem o apoia parece esquecer. O próximo governo – do PS – irá receber uma hernça bem pior: um país em estado de choque político-economico-social, com uma economia exangue, com uma situação social catastrófica, com uma larga maioria empobrecida a pagar a crise e uma minoria enriquecida com a crise, a beneficiar dela. Cadilhe não tem uma palavra, ao que vejo aqui, sobre os desgraçados pensionistas, reformados (já nem falo dos funcionário públicos – essa “escumalha”, aos olhos deste inqualificável governo, que tudo faz para retirar dignidade aos servidores do Estado e reduzi-los a uma situação humilhante). Mas, mais grave, nisto que aqui nos transcreve, é a frase de Cadilhe, esse ex-governante de Cavaco e PSD, sobre a “serenidade do primeiro-ministro perante o desabamento. Faz bem. Dá sinais de que terá razão”. Extraordinário! Pasme-se! Um PM que afronta um Orgão de Soberania (sob o silêncio tácito de Belém!), como o TC, publicamente, que propõe no futuro juizes adequados para lhe aprovarem os orçamentos inconstitucionais (!), que, ao contrário de governos anteriores, entre os quais do seu Partido, em vez de procurar elaborar orçamentos que não vão ferir princípio basilares da Lei Fundamental, faz o oposto, é este PM e este governo que Cadilho vem em socorro. Compreende-se. O seu “cartão” de ex-ministro de um governo do PSD/Cavaco assim o “obriga”. Enfim, um Post que, no seu pleníssimo direito e legitimidade, vem, discretamente, atacar, também, o TC, em “socorro” do governo. Não vejo nada de mal nisto. Mas, cada macaco no seu galho. Cadilhe e o governo num, o TC e a Lei Fundamental, afrontada por 8 vezes, até ao momento (esperam-se mais para breve) noutro.
Cordialidade,
P.Rufino
PS: prefiro a frontalidade à bajulice. É por isso que sempre gostei destes Blogue. Por aceitar a diferença, mesmo que não concorde nada com ela. Como será o caso.
O que se pode esperar de uma Constituição aprovada há quase 40 anos, através de um PREC, que devia ser transitório e iniciar o processo verdadeiramente democrático que as varias revisões não abarcaram? Hoje, a realidade é muito diferente, os regimes não se querem totalitários, e, muito menos estatizantes, sem o mínimo de sustentabilidade. Chego à triste conclusão que, a Reforma do Estado, não vai ser possível nos tempos mais próximos, pois, exige uma enorme persistência contra todos os "instalados".
Abraços
Relembro que os juízes do Tribunal Constitucional são escolhidos pelo Parlamento e os restantes pelo Presidente da Répública.
Se Passos Coelho tivesse alguma razão, perdeu-a, com as recentes declarações que fez e "esquecendo" como lá foram colocados .
Cumprimentos.
Caro P Rufino
Como terá lido na minha introdução ao post de Cadilhe eu uso entre aspas a palavra "uma", o que significa isso mesmo - uma opinião entre muitas - e não aquela que eu terei.
A que eu tenho está longe de ser linear porque se por um lado entendo a posição do TC, por outro, analisando oito chumbos, admito que se está a caminhar para um "border line" do justicialismo, opção que pode conduzir a caminhos perigosos.
Quem me lê sabe que este governo não tem o meu apoio. Mas nenhuma das oposições existentes me satisfaz. E eu não uso o meu voto para o "contra". Uso-o para "apoio" daqueles em quem acredito mais.
Por isso, a abstenção, os nulos e os brancos são a maioria dos votantes. E estes, uma minoria da população. Isto é que me preocupa nesta democracia de pacotilha partidária.
Já o Rufino me parece estar na posição contrária e utilizará ou não o seu voto para derrubar. É uma posição tão legítima como a minha ou outra qualquer.
Caros comentadores
Como expliquei a P.Rufino este post não representa o que eu penso. Trata-se de "uma" opinião. Existem outras. Existe até a minha. Mas esta, só quando eu sentir que está bem fundamentada é que será uma opinião. Por enquanto é um ponto de vista. E voltarei ao assunto quando se clarificarem as dúvidas que ainda tenho.
eu acrescento um quarto ponto em que este governo e demasiada gente está errada, é considera os oredenados dos funcionários publicos despesas. O meu ordenado é fruto do meu trabalho. Não sou despesa produzo, sirvo com dedicação e responsabilidade. Despesas serão muitos beneficios que muitos recebem e não deveriam e muitos são privados, demasiados privados que dependem do estado. Aborrece-me que tanta gente que sabe o que vale o nosso trabalho, a dignidade das nossas horas diárias, se embale neste discurso de vamos lá queimar funcionários publicos....pois!
Bom, há ideias básicas importantes:
- O orçamento deveria prever as despesas em função das receitas que tem e não as receitas necessárias para cobrir as despesas;
- Exigir responsabilidade ao próprio TC por não ter exercido imparcialmente a sua função também nos anos anteriores e que levaram à engorda embaraçosa e insustentável do estado;
- crítica ao governo por “reaparecer sem soluções estruturais”;” reincidir nos cortes de certas despesas”; e “afrontar o Tribunal com essas repetições”.
À parte os partidarismos, estamos maioritariamente de acordo ou não?
Cumprimentos,
Cláudia
Serenidade do primeiro ministro? depois das intervenções dos últimos dias que fazem dele um autentico fora da lei? O Cadilhe deve estar a delirar. está toda a gente muito preocupada com as birras do primeiro ministro, ninguém está preocupado com as pessoas que têm os seus vencimentos de trabalho cortados. Isso não conta? como é que se resolve esse buraco na vida das pessoas, dentro dos lares das pessoas? isso não conta? pois não. Lá diz o ditado, mais ou menos assim 'pimenta no rabinho dos outros, é refresco'.
Teresa Peralta, do que que é que é a Constituição da republica Portuguesa? Faz alguma ideia para que serve? faz alguma ideia do que é a democracia? devia fazer!!!
Mota Soares disse:
http://www.jornaldenegocios.pt/economia/impostos/detalhe/fundo_de_pensoes_do_banco_de_portugal_escapa_a_novos
Notícias destas são um espanto! Muito gostaria que alguém me explicasse porque os funcionários do BP não são FPs?
Anónimo das 15:30
Não se fie em tudo o que lê ou ouve nos jornais e na tv, porque corre o risco de acreditar em mentiras...
E se o comentário foi feito por eu ser pensionista do Banco de Portugal errou o alvo. Os pensionistas do BdP não foram poupados a nenhuma das medidas até agora tomadas pelo governo relativamente a pensões. É fácil comprovar o que digo, se quiser dar-se a esse trabalho.
Eu sei o que é Democracia e o Anónimo das 12:49, sabe o que foi o PREC, e o que saiu desse movimento revolucionário ? Pois olhe que acabou, também, numa nova e, hoje, imatura, Constituição da Republica Portuguesa.
Oh teresa Peralta, está com pena do governa? dê-lhe uma parte do seu salário! Olhe, no que eles deviam poupar, não poupam. tenha pena deles, tenha! Eles t~em muita pena de si
Anónimo das 19:55
Não se trata de ter pena, nem do Governo nem de mim própria, dado que apenas comento aquilo que considero relevante. Quanto ao salário, tire daí a sua ideia, porque, não existe, nem sequer para dividir: não sou funcionária publica.
(Peço desculpa à dona desta casa e prometo que não vou fazer mais nenhum comentário a este post.)
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