terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Saudade

A 28 de Janeiro a Farmacêutica Roche promoveu um evento denominado "Inspired" que reuniu cerca de cento e quarenta médicos pneumonologistas e oncologistas do Pais e que se organiza já há mais de 10 anos, tendo em 2017 tido a sua a 11ª edição.   
Eu assumira o compromisso de encerrar este encontro e foi quase por milagre que cumpri a promessa, tal a série de acontecimentos negativos que, entretanto, se foram desenrolando... Mas cumpri. 
Entretanto recebi várias mensagens a pedirem-me o texto e começou a ser difícil responder a todos. Então decidi publicá-lo. Aqui o têm.

Saudade

Todos sabemos que, um dia, a maioria de nós irá separar-se. Sentiremos saudades de todas as conversas que acabámos por não ter, das descobertas que fizemos em conjunto, dos sonhos que sonhámos, dos muitos risos e momentos que compartilhamos e até, quem sabe, das lágrimas que também chorámos.
Saudades do companheirismo então vivido, das angústias por que passámos, das vésperas dos finais de semana sozinhos, dos finais de ano em que acreditávamos que a vida seria sempre assim, feliz. Saudades, talvez, quem sabe, porque sempre acreditámos que o amor e as amizades se fizeram para ser eternas.
Mas a verdade é que uma decepção pode diminuir um amor que parecia ser enorme e uma ausência pode aumentar um amor que parecia ser frágil.
Assim, torna-se difícil conviver com este tipo de elasticidade afectiva na qual, aos nossos olhos, as pessoas se agigantam ou se encolhem e em que o nosso julgamento é feito não de escalas métricas, mas de acções e reacções, de expectativas e frustrações.

Diz a sabedoria popular que tudo na vida tem dois lados. Um bom e outro mau. Embora esta visão dependa do modo como olharmos as situações será difícil não considerar a saudade como um sentimento ambíguo.
É verdade que também se diz que ela constitui a prova de fogo para saber se algo ou alguém terá valido a pena traduzindo, afinal, suprema ironia, a dualidade de que “sentir a falta” poderá ser simultaneamente bom e ruim.
Senão vejamos. Saudade é amar um passado que nos magoa no presente. É uma felicidade retardada. É sentar numa cadeira e relembrar acontecimentos que nos tornaram felizes ou emoções que nos terão feito sofrer. É o amor que ainda não foi embora, embora  a pessoa amada já o tenha feito. É imaginar onde alguém deve estar agora, saber se ainda gosta do prato preferido, se chorou ou não com o nosso afastamento.
E, quando a saudade não cabe mais no peito, ela acaba por se materializar nas lágrimas que não sendo de tristeza, nem tão pouco de alegria, transbordam dos nossos olhos.
Sentir saudade é ter a ausência sempre perto de nós. É mudar radicalmente a nossa rotina, frequentar lugares que não conhecíamos, ter dias mais compridos, ter tempo para os amigos, para os vizinhos e para a família. A saudade é a inconfortável expectativa de um reencontro, que às vezes é tão grande, que não é mais um sentimento, porque a pessoa se torna saudade. A saudade só não mata, porque também tem o prazer da tortura.
É viver para encontrar o que se perdeu, sorrir com os lábios tendo o coração sufocado. É perceber que apesar de ela ser feita para doer, às vezes também é o meio mais eficaz de enxergar o quanto amamos alguém, no passado ou mesmo no presente. Deste modo, ela é capaz de agregar opostos, como a tristeza e a felicidade e transformar certos momentos da nossa vida em algo de profundamente ambíguo.
Todavia há quem admita não ter saudades de nada, independentemente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de um tempo mais feliz ou menos feliz.
Saudades de nada. Nem mesmo de quem morreu. Porque, dizem, de quem morreu o que se sente é a falta, o prejuízo da perda, a ausência. É a vontade da presença, não no passado, mas na actualidade, no tempo presente. É querer tê-los aqui, consigo, agora. E enfatizam que voltar atrás nunca, nem mesmo com eles. Poderá parecer estranho, mas talvez corresponda a uma visão de que a vida é um caminho que se tem de fazer, uma obrigação de que é preciso prestar contas. No fundo é uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias.

Entalar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Uma bofetada, um soco, um pontapé, doem. Dói bater com a cabeça no canto da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é a  saudade que sentimos de um irmão que mora longe, de uma cachoeira onde nos banhámos na infância, do gosto de uma fruta que não se encontra mais, do pai que já morreu, de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade, afinal, de nós próprios, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Todas estas saudades doem imenso. 
Se pudéssemos graduar esta malfadada dor, arriscaria dizer que a saudade mais dolorosa é a saudade de quem se ama. Saudade da sua pele, do seu cheiro, dos beijos trocados. Saudade da presença, e até da ausência consentida, em que embora as pessoas não se vejam, sabem onde o outro se encontra e têm a certeza de que se voltam a encontrar.
Quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter, porque saudade é, também, justamente, não saber.
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que nos parem o pensamento, não saber como conter as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada nem ninguém consegue preencher.
Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, continuar a sofrer.
Há pessoas que confundem os sentimentos de nostalgia e saudade, porque pensam que são a mesma coisa. Não são. Nostalgia dói mais do que saudade, é como o fim do dia, em que a única saída é a noite.
A saudade suporta-se de forma inquietamente, mas tem cura. A nostalgia é lembrar, após alguns anos, um certo momento, que às vezes até se repete, mas sabermos que já não é a mesma coisa. Saudade é quando o ser amado se foi embora, mas o amor ainda ficou. Nostalgia é quando o amor também se foi...
Saudade é o que sentimos quando deixamos a casa dos pais e vamos morar sozinhos, em qualquer canto do mundo. Nostalgia é quando nos lembramos do tempo em que esses pais jogavam bola ou brincavam connosco...
Sente-se saudade da avó, que mora longe e cada vez que a visitamos nos prepara um monte de comidas gostosas. Sente-se nostalgia quando já não se tem a avó, mas ainda sentimos o gosto das guloseimas que ela fazia...
É saudade que sentimos da nossa casa quando viajamos e ficamos um tempo fora. Mas é nostalgia lembrarmo-nos de tudo o que vivemos ali, na nossa casa abandonada...
Saudade a gente pode ter de um brinquedo, de andar de bicicleta. Nostalgia é lembrança de como era simples e feliz a nossa infância...
Saudade é um sentimento urgente, nostalgia não tem outra solução que não seja conformarmo-nos. Saudade é a ausência provisória de alguém, nostalgia é a ausência eterna de um momento.
Esta é a catarse de que falei no início. Aquela que constitui a explosão em palavras daquilo por que se poderá ter passado. Agora vem a pergunta de como conviver com tudo isto.

Creio que será permitido a toda a gente guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa. Que não será proibido confessar que, às vezes, se tem saudades. Nem será odioso dizer que uma separação dolorosa nos traz, ao mesmo tempo, um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego e um indefinível remorso ou um recôndito despeito.
E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram na nossa vida, guardados no nosso coração. E que a lembrança deles, se por um lado nos faz sentir maior a nossa solidão, por outro lado permite-nos compreender que essa solidão ficou menos infeliz.
Julgo que foi assim que terei diariamente conseguido viver, primeiro sem a mãe e depois sem o filho que partiu. Na minha casa as fotos  de momentos mais felizes e menos felizes encontram-se por todo o lado. Os da alegria e os da tristeza. Porque a vida é isso mesmo, e eu não pretendo apagar o meu passado, nem nostalgicamente ficar sua prisioneira. O que quero é que as boas saudades do futuro sejam possíveis, porque tive, justamente, o meu passado!



Lisboa, 28 de Janeiro de 2017         Helena Sacadura Cabral

16 comentários:

  1. Parabéns pelo belíssimo texto que me fez chegar uma lagrimita sem eu contar.
    Gostei muito
    Maria Isabel

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  2. Obrigada pelo texto que li com uma sensação de que tudo o que significa saudade está aí! Texto belo, poético,profundo e que nos obriga a reflectir. Emocionou-me, fez-me pensar e sobretudo um texto que me diz muito e que eu gostaria de ter escrito... Parabéns.
    Bjs da Maria do Porto

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  3. Obriga-nos a rever tantos momentos e a sentir deles a saudade e a nostalgia.
    Um texto lindo, como sempre.
    Abrações

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  4. Uma prosa de saudade e nostalgia mas sobretudo uma prosa de amor! Obrigada pela partilha! Abraço

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  5. Drª Helena!
    Obrigada por partilhar este belissimo testo. Não sabe o bem que me faz ler as suas palavras. É sempre bom ler quem escreve bem.
    Obrigada
    Beijinho
    Maria M

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  6. Fantástico. Que descrição e que lição perfeitas.
    Obrigado por partilhar connosco este texto.

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  7. Lindíssimo texto! OBRIGADA por partilhas estas palavras tão bonitas, tão profundas connosco. Muito obrigada,
    VW

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  8. Helena
    Magnifico texto,tenho aprendido muito consigo.

    Abraço
    Carla

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  9. Um texto que escrito por si é sábio do conhecimento real
    desse sentimento que nos leva à palavra Saudade.

    Cada um que ler o seu texto(da sua intervenção) sentir-se-á
    tocado pela saudade que já sentiu ou continua a sentir.

    Temos que saber viver com a Saudade, quando foi positiva,
    quando foi negativa, porque ter Saudade é ter vivido "momentos,
    sentimentos,risos e lágrimas".

    Drª. Helena, uma excelente intervenção que lhe saiu do seu
    mais profundo sentir - atrevo-me eu a dizer.

    Os meus cordiais cumprimentos.
    Irene Alves

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  10. Tão lindo... Tão tocante...Tão sentido!
    Obrigada

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  11. Fico com as suas palavras..."embriagado".
    Obrigado.

    Gralhas

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  12. Perhaps Love

    https://youtu.be/3FA5x1o1q7w

    Ghost

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  13. A verdadeira Saudade ,como diz, é dor sentida pela ausência do outro.
    Às vezes, é um vazio como se faltasse um bocado de nós próprios.
    Outras vezes, parece que " o chão foge debaixo dos pés."
    No fundo, só tem Saudade quem ama e o amor é sublime.
    Acredito que o verdadeiro Amor é forte e eterno.
    Como dizia S.Josémaria, não sabias que a dor é a pedra de toque do Amor?

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