O ESCRITÓRIO DO MEU PAI
"A
palavra “escritório” sempre exerceu sobre mim uma espécie de magia. As longas
horas da minha infância passadas no escritório do meu pai contribuíram
certamente para isso. Na altura, trabalhava-se ao sábado e o meu pai
tinha por hábito levar-me com ele durante a manhã, talvez para libertar a minha
mãe para outras tarefas domésticas ou sobretudo, porque sabia que eu apreciava
particularmente esse programa.
Naquele
escritório tudo me fascinava. Desde o som do teclado das máquinas de
escrever onde os dedos das secretárias se mexiam a uma velocidade estonteante,
aos telefones que tocavam incessantemente e cujas chamadas eram passadas para o
gabinete do meu pai, através da voz pausada e muito profissional da Maria
Fernanda: “Sr. Almasqué, é de Buenos Aires, vou passar.“ ou “Sr.
Almasqué, é de Montreal, vou passar.” Os nomes de várias cidades, algumas
totalmente desconhecidas para mim, outras que eu imaginava longínquas,
desfilavam assim perante os meus ouvidos: Manchester, Milão, Hamburgo,
Copenhaga, Reykjavik, Luanda, Durban, São Paulo ou Nova York estavam ali, ao
alcance de um telefonema, tornando o mundo mais pequeno, como num golpe de
magia. O meu pai tão depressa falava espanhol, como francês, inglês ou italiano
e até arranhava russo, o que me fazia olhar para ele com um misto de estranheza
e de secreto orgulho.
Outro mistério
que me intrigava era a máquina do telex. Um aparelho donde saíam longos metros
duma estreita fita de papel cheia de buraquinhos que ia serpenteando pelo chão
e que aparentemente trazia mensagens de importância crucial para os negócios.
Quando o telex começava, com o seu ruído característico, a debitar a sua
lombriga perfurada, gerava-se imediatamente no escritório um ambiente de
expectativa. Que resposta viria naquela fita enigmática?
Todo esta
atmosfera me deixava num estado de excitação tal, que obrigava o meu pai a
sentar-me em frente a uma das máquinas de escrever e a dar-me o rascunho de
qualquer carta fictícia para, com os meus pequenos dedos, eu tentar
dactilografar. Ao fim dalgumas horas e após mudar a folha de papel
tantas vezes quantas aquelas em que me enganava numa das palavras (e eram
muitas), lá ia eu apresentar o meu trabalho, cheia de brio profissional,
tentando esconder as mãos sujas do papel químico.
Quando o
ambiente era mais calmo e todos se concentravam no trabalho, eu ia de gabinete
em gabinete, mexendo e remexendo à socapa, naqueles objectos que povoavam todos
os escritórios daquela época: lápis, borrachas, canetas, agrafadores,
furadores, carimbos, clips, fita cola, máquinas de calcular de manivela,
pequenas caixas com os objectos mais variados e muitas outras coisas que faziam
as minhas delícias de aprendiz de “business-women”.
Em casa, um dos
meus entreténs favoritos era ” brincar aos escritórios”, tentando reproduzir
tão fielmente quanto possível toda esta actividade. Espalhava papéis e canetas
de várias cores em cima duma pequena secretária e com uns auscultadores velhos,
fingia falar ao telefone em várias línguas, com o ar mais sério deste mundo,
perante os olhares condescendentes da minha mãe e da minha avó.
O escritório do
meu pai ocupava um andar de um prédio pombalino, junto ao Cais do
Sodré e estendia-se numa sucessão de salas, corredores, gabinetes e pequenos
esconsos, que desembocavam uns nos outros e onde todo o espaço era aproveitado
ao máximo. Armários e estantes com papelada e dezenas de dossiers de cores
variadas ocultavam os lambris de azulejos cuja beleza eu só viria a descobrir
mais tarde. No meio deste labirinto, duas divisões tinham um estatuto especial:
o gabinete do meu pai e a chamada “tulha”.
O primeiro,
onde eu passava grande parte do tempo, tinha uma pesada secretária de “torcidos
e tremidos“ e um velho cofre, onde eu imaginava segredos escondidos, que
pretendiam conferir um ambiente formal ao “gabinete do patrão” mas que a
personalidade do meu pai, avessa a formalidades, conseguia destruir através dos
objectos mais insólitos e inesperados, desde brinquedos de corda, estatuetas,
recordações de viagem, calendários ou até alguns objectos de uso diário,
considerados atraentes por qualquer razão. As paredes estavam cobertas de
fotografias, quadros comprados a artistas de rua, recortes de jornais
encaixilhados, desenhos infantis feitos pelos mais jovens da família
e galhardetes de vários clubes desportivos entre os quais não podia faltar a
bandeira do Sporting.
No outro
extremo do escritório, situava-se a chamada “tulha”, única divisão que se
encontrava fechada à chave e à qual só se acedia com autorização do meu pai,
não porque encerasse algum segredo importante mas porque era ali que ele
acumulava tudo aquilo de que verdadeiramente gostava: livros antigos adquiridos
em alfarrabistas, colecções de várias revistas portuguesas e estrangeiras
relacionadas com desporto ou com história, centenas de fotografias e de postais
de Natal trocados com os inúmeros amigos adquiridos através da vida
profissional, correspondência pessoal, objectos de colecção e tudo o que se relacionava
com a actividade desportiva e com o seu passado de jogador de handball e de
dirigente do Sporting. Curiosamente, sendo o meu pai um sportinguista ferrenho,
um dos objectos que se impunha logo a qualquer intruso era uma enorme águia
embalsamada, de asas abertas, pousada sobre a secretária e cuja proveniência
ainda hoje ignoro. Havia também uma colecção de discos de vinil (45 e 33
rpm) que iam da música popular francesa à ópera, da música pop e dos
Beatles às zarzuelas e até à música dos coros da armada russa, género musical
que o meu pai muito apreciava. Era nesta “tulha” que ele passava longas horas,
a ler, a escrever ou a organizar papéis e era provavelmente aqui que lhe
surgiam muitas das ideias cuja invariável extravagância fazia desconfiar os
colaboradores mais próximos, mas que acabavam por desembocar em negócios
inovadores, embora nem sempre rentáveis.
Para o espírito
sonhador do meu pai e muito à frente do seu tempo, a divisão do dia em vinte e
quatro horas não fazia qualquer sentido, pelo que tanto podia chegar ao
escritório às seis da manhã como às seis da tarde e aí permanecer até de
madrugada, pondo não poucas vezes a família em sobressalto. Tanto podia almoçar
às quatro da tarde como beber chá às quatro da manhã e dormia quando tinha
sono, fosse de dia ou de noite. Por isso, embora fosse exigente no cumprimento
das tarefas, não impunha horários rígidos a ninguém e permitia que cada um
conciliasse a vida familiar e o dia de trabalho como achasse melhor,
proporcionando assim entre todos um ambiente alegre e descontraído. Esta
atmosfera pacífica era ocasionalmente interrompida pelos eventuais picos de mau
feitio do Jorge Pinto, sócio número um do meu pai, possuidor da mais bondosa
das almas mas cuja personalidade irascível conseguia por toda a gente em
alvoroço.
Algumas décadas
mais tarde, voltei de novo ao escritório. O meu pai já tinha morrido há mais de
30 anos e a empresa mantivera-se em actividade, perdendo progressivamente o
espírito inovador e criativo que ele lhe impunha, entrando em decadência até
fechar definitivamente. Foi como se o tempo tivesse parado ali. Uma camada
espessa de pó cobria os móveis e os objectos. O cenário mantinha-se inalterado,
só faltavam os actores. A minha memória ficou de repente inundada com as recordações
daquela época. Revi a figura do meu pai, homem afectuoso, de personalidade
extravagante para quem não havia impossíveis. Foi nessa altura que tive a
certeza de que foi com ele que aprendi a sonhar."
Este comovente
texto foi escrito pela minha querida amiga Isabel Almasqué, que há longos anos
se ocupa dos meus olhos e me mantém com este belo olhar, pesem embora as
maleitas que por vezes tenho resultantes da tranquilíssima vida familiar que
levo...
Foi publicado
no site DOMA - www.deoutramaneira.com - cuja visita
aconselho vivamente a todos os que acreditam na cidadania e se não demitem de a
praticar. Apesar disso, e porque me tocou muito, pedi-lhe se mo deixava dá-lo a
conhecer aqui no Fio de prumo.
A Isabel é uma
das pessoas mais completas que conheço. Além de excelente oftalmologista, ainda
é uma especialista de azulejaria nacional, com obra publicada e uma
aventureira viajante.
Este seu texto
fez-me retroceder várias décadas e relembrar também o meu Pai e a importância
que ele teve na minha vida. E ao mesmo tempo confirmou a ideia que tenho, de
que há sempre uma criança escondida dentro de nós!
HSC
O texto é realmente belíssimo e faz-nos também sonhar e reviver pedaços da infância. Óptima ideia esta partilha. :)
ResponderEliminarUm beijinho
Cara Helena (permita-me que a trate assim), não sou de comentar blogs mas fiquei verdadeiramente encantada com este texto e, para meu grande espanto, descubro que foi escrito pela "minha" médica! Obrigada por me (nos) ter dado a conhecer este texto, farei questão de o mencionar na próxima consulta - há muito adiada...
ResponderEliminarPs- obrigada pelas maravilhosas receitas no "outro poiso".
Filipa
Que bom ler um texto assim. A sua amiga devia escrever mais. E mito obrigada a si, por no-lo ter dado a conhecer!
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ResponderEliminarHelena
Quando comecei a ler, pensei que falava do seu pai.
Texto delicioso, a descrição quase nos leva a imaginar o escritório, os protagonistas. Vou visitar a página.
Carla
ResponderEliminarGostei de ter entrado no escritório, através das fotos e conhecer Isabel Almasqué. Um espaço cheio de pó sem vida,repleto de boas recordações, que nos fez viajar no tempo. Engraçado, como as fotos descrevem quase tudo o que o texto menciona. Passar as imagens, para as palavras não é fácil.
Carla
Grande Leão,e quem sabe o estádio de Alvalade foi construído em azulejos para homenagear a filha.A alma de Leão vive eternamente.
ResponderEliminarUm texto profundo e com uma vivacidade genuína digno de uma Leoa.
Orgulho,orgulho!
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Fās do SCP
🌹🌹🌹
ResponderEliminarIsso, da Dra. Isabel, chama-se sensibilidade. Não se aprende, não se ensina. Nasce com a pessoa. Que bom conhecer e contatar com pessoas assim. Conheci uma pessoa que, passados 65 anos, teve a curiosidade de conhecer uma casa, a 300 kms. de distância, que seu pai, então mestre-de obras, construiu para o seu patrão. Recordações que lhe ficaram, quando criança, por ter sentido a ausência do pai por um período grande de tempo. Quando lá chegou não era mais uma casa, eram uns escombros...
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