quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Património em risco

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JORNAL DE ANGOLA

Director: José Ribeiro
Director Adjunto:
Filomeno Manaças
Editorial

Património em risco
08 de Fevereiro, 2012

Os ministros da CPLP estiveram reunidos em Lisboa, na nova sede da organização, e em cima da mesa esteve de novo a questão do Acordo Ortográfico que Angola e Moçambique ainda não ratificaram. Peritos dos Estados membros vão continuar a discussão do tema na próxima reunião de Luanda. A Língua Portuguesa é património de todos os povos que a falam e neste ponto estamos todos de acordo. É pertença de angolanos, portugueses, macaenses, goeses ou brasileiros. E nenhum país tem mais direitos ou prerrogativas só porque possui mais falantes ou uma indústria editorial mais pujante.                                        
Uma velha tipografia manual em Goa pode ser tão preciosa para a Língua Portuguesa como a mais importante empresa editorial do Brasil, de Portugal ou de Angola. O importante é que todos respeitem as diferenças e que ninguém ouse impor regras só porque o difícil comércio das palavras assim o exige. Há coisas na vida que não podem ser submetidas aos negócios, por mais respeitáveis que sejam, ou às “leis do mercado”. Os afectos não são transaccionáveis. E a língua que veicula esses afectos, muito menos. Provavelmente foi por ter esta consciência que Fernando Pessoa confessou que a sua pátria era a Língua Portuguesa.
Pedro Paixão Franco, José de Fontes Pereira, Silvério Ferreira e outros intelectuais angolenses da última metade do Século XIX também juraram amor eterno à Língua Portuguesa e trataram-na em conformidade com esse sentimento nos seus textos. Os intelectuais que se seguiram, sobretudo os que lançaram o grito “Vamos Descobrir Angola”, deram-lhe uma roupagem belíssima, um ritmo singular, uma dimensão única. Eles promoveram a cultura angolana como ninguém. E o veículo utilizado foi o português. Queremos continuar esse percurso e desejamos que os outros falantes da Língua Portuguesa respeitem as nossas especificidades. Escrevemos à nossa maneira, falamos com o nosso sotaque, desintegramos as regras à medida das nossas vivências, introduzimos no discurso as palavras que bebemos no leite das nossas Línguas Nacionais. Sabemos que somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via erudita e a via popular. Do “português tabeliónico” aos nossos dias, milhões de seres humanos moldaram a língua em África, na Ásia, nas Américas. Intelectuais de todas as épocas cuidaram dela com o mesmo desvelo que se tratam as preciosidades.
Queremos a Língua Portuguesa que brota da gramática e da sua matriz latina. Os jornalistas da Imprensa conhecem melhor do que ninguém esta realidade: quem fala, não pensa na gramática nem quer saber de regras ou de matrizes. Quem fala quer ser compreendido. Por isso, quando fazemos uma entrevista, por razões éticas mas também técnicas, somos obrigados a fazer a conversão, o câmbio, da linguagem coloquial para a linguagem jornalística escrita. É certo que muitos se esquecem deste aspecto, mas fazem mal. Numa entrevista até é preciso levar aos destinatários particularidades da linguagem gestual do entrevistado.
Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não tivesse acentos ou consoantes mudas. O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula. Nestas coisas não pode haver facilidades e muito menos negócios. E também não podemos demagogicamente descer ao nível dos que não dominam correctamente o português. Neste aspecto, como em tudo na vida, os que sabem mais têm o dever sagrado de passar a sua sabedoria para os que sabem menos. Nunca descer ao seu nível. Porque é batota! Na verdade nunca estarão a esse nível e vão sempre aproveitar-se social e economicamente por saberem mais. O Prémio Nobel da Literatura, Dário Fo, tem um texto fabuloso sobre este tema e que representou com a sua trupe em fábricas, escolas, ruas e praças. O que ele defende é muito simples: o patrão é patrão porque sabe mais palavras do que o operário!
Os falantes da Língua Portuguesa que sabem menos, têm de ser ajudados a saber mais. E quando souberem o suficiente vão escrever correctamente em português. Falar é outra coisa. O português falado em Angola tem características específicas e varia de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável para os angolanos mas também para todos os falantes. Tal como o português que é falado no Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP. A escrita é “contaminada” pela linguagem coloquial, mas as regras gramaticais, não. Se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que através de um qualquer acordo ela seja simplesmente ignorada. Nada o justifica. Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras.


Creio que, após a leitura deste artigo, cada um poderá fazer o seu julgamento. Eu já fiz o meu, há muito tempo. Sou contra o AO.

HSC

10 comentários:

  1. Dra. Helena, quem lê os textos antigos na versão original percebe facilmente que a língua portuguesa é um organismo vivo, mutável, belo, rico e surpreendente... Hoje é erro ortográfico escrever-se photographia, pharmacia, theatro, cançado, egreja, mas nem sempre foi assim. Se o tempo corresse do futuro para o passado, estou certo de que haveria greves, cordões humanos, vigílias, se fosse necessário uma revolução para que tudo continuasse na mesma. Os nossos parceiros da CPLP ignoram o acordo, nós também o podemos fazer no próprio país que o quis 'aprovado'e aplicado à pressa, atabalhoadamente.
    Pedro

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  2. Pedro
    Concordo inteiramente consigo no que respeita à vitalidade e dinâmica da língua. Infelizmente nem o AO garante isso, nem as autoridades que o aprovaram apressadamente souberam ouvir aqueles que estudam a linguística e se pronunciaram .
    Dou-lhe um exemplo. O meu nome materno é Helena Ayres Trindade. O Ayres tem trema mas o meu Mac ignora que o acento existe. Quando renovei o BI logo apó 25 de Abril, a menina do Arquivo determinou que em português não havia a letra "y" e obrigou-me a usar Aires. Resultado, não sou filha da mesma mãe dos meus irmãos...
    É este tipo de diatribes que me irrita. Por isso vou agora "democraticamente" no cartão do cidadão recuperar o nome de família!

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  3. Eu não utilizo o acordo ortográfico. E não percebo
    o porquê de Portugal o ter
    aprovado.
    Cumprimentos
    Irene Alves

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  4. É muito bonito e apresenta razões de peso. Mas eu até intuitivamente seria contra o acordo. E estou decidida desde que me lembro.
    Claro que apresentar razões tem outro peso e talvez convença.

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  5. Tenho um problema semelhante ao seu com o Mouzinho com s e com z. :)

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  6. Concorde-se ou não com o AO,este Editorial é simplesmente excepcional.
    O meu aplauso.
    FT

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  7. Tenho uma colega de Clássicas que diz com muita graça: "foi a escavacar o latim que chegamos ao português de hoje"!

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  8. Também a minha modesta opinião, é completamente contra o OA. Espero que tenha feito parte deste grupo popular, como notável que é, sempre imprescindíveis no sucesso de qualquer acção. http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/acordo-ortografico-contestado-em-tribunal-1676304

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  9. Sou completamente contra o AO.
    Estive matriculada numa Universidade da Terceira Idade, numa aula de Arte de Escrever.
    Quando, na primeira aula, o professor disse que os trabalhos a apresentar teriam de ser feitos segundo o novo Acordo Ortográfico nunca mais lá fui.

    Gosto muito da sua maneira de escrever e expor os assuntos
    Beijinho

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  10. Peço desculpa pelo abuso da minha observação, e outras palavras que queira utilizar, mas nesta coisa da língua portuguesa, sou tinhoso.
    Reparei que usou aspas ao escrever que a escrita é contaminada.
    Sou da opinião que as aspas são castradoras das palavras. Temos uma série de figuras de estilo, que perdem a força aos serem aspadas (aprendi, numa cadeira de semântica, que se as palavras não existem, devemos ser nós a criá-las).
    Bem haja por ler o meu bitaite.

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