terça-feira, 19 de novembro de 2013

Entre as brumas da memória

Doris Lessing, cujos livros acompanharam a minha juventude morreu há dois dias, com 94 anos. Em 2007, foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura e então escreveu um belíssimo discurso que intitulou «Como não ganhar o prémio Nobel».
Falou de livros, do sonho de saber nos países pobres, da falta de interesse da juventude no mundo dos ricos. Falou sobretudo de África, do Zimbabwe que ela tão bem conheceu, recordou uma «aldeia onde a população não comia há três dias, mas onde se falava de livros e dos meios para conseguir obtê-los»; um autor negro, seu amigo, que «aprendeu a ler sozinho, nas etiquetas dos frascos de compota e das latas de conservas de frutos»; uma localidade perdida no mapa, onde dois jovens resolveram escrever romances na língua nativa (tonga); um jovem de dezoito anos que, ao receber uma caixa com livros oferecidos por um americano, os embrulhou cuidadosamente num plástico, com receio de que se estragassem, sabendo que dificilmente poderia voltar a receber outros.
O discurso é longo, pode ser lido em inglês ou em francês. Deixo aqui em português algo que resume bem o que ela pensava de quem escreve.
Há sempre um o “fazedor de histórias” escondido no fundo de cada um de nós. Suponhamos que o nosso mundo era destruído pela guerra, pelos horrores que todos podemos facilmente imaginar. Suponhamos que inundações submergiam as nossas cidades, que o nível dos mares subia… O narrador estaria sempre lá, pois é o nosso imaginário que nos modela, que nos faz viver, que nos cria, para o bem ou para o mal. São as nossas histórias que nos recriam quando estamos despedaçados, moribundos, ou mesmo destruídos. É o narrador, o fazedor de sonhos, o construtor de mitos, que é nossa fénix, aquilo que somos no melhor de nós mesmos, da nossa criatividade.
(entreasbrumasdamemoria.blogspot.pt)

HSC

7 comentários:

  1. Sublime. Que bonito.Há sempre esperança, enquanto há imaginação.
    Beijinho Dra. Helena e obrigada.
    Ana

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  2. Lindo post. E ela, Doris Lessing, merece-o sem dúvida. Grande escritora. Não morreu pois cada uma das suas obras ficará para sempre na nossa memória colectiva.


    Tenho enviado muitos livros para Angola, pois tenho portador, mas não compreendo porque é que as editoras preferem destruir os livros que não vendem ( falo de manuais escolares) do que oferecerem-nos para os países de África.

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  3. tal como nadine gordimer, a sua literatura é grande embora ocasionalmente pouco atraente. mas os contos e novelas de africa e de londres de dl são obras primas de ficção, contos um pouco à maneira dos classicos do genero, maupassant, tchekov, interessantíssimos.
    dl é para mim mais legivel que ng.
    escreveu até ao fim da vida, uma trabalhadora da literatura.
    soube pela entrada a noticia, vou ler obituários ingleses, do guardian, que sempre nos informam exemplarmente sobre as vidas dos que se foram.
    que se dirá hoje na rodesia/zimbabwe?

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  4. Também eu li, e releio, esta autora. Sim, há sempre uma narrativa a construir, uma história para surgir. O pior é quando a página seguinte está em branco.
    Luísa Moreira

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  5. Ao que li, nos últimos anos, perdeu a memória do Nobel, de alguma vez ter sido escritora e de muitas outras coisas. E, no entanto, emocionava-se quando lhe liam excertos de livros seus. Provavelmente porque "o fazedor de sonhos" continuava lá, no mesmo sítio de sempre.
    Pergunto-me muitas vezes o que será que pensam e sentem os que, como ela, - e são tantos! - perderam grande parte da suas memórias. E penso que nos resta devolver-lhes em amor muito do que entretanto lhes "fugiu".
    Quanto a Doris Lessing, cabe-nos agora pegar nas suas palavras e construir sonhos nossos, com o melhor de nós mesmos.

    Comovedor este post, Helena, ou serei eu que estou hoje mais sensível :)
    Beijinho
    Isabel

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  6. Li o discurso todo, interessante o contraponto e a forma como é apresentada a dura realidade dos que nada têm perante os que têm tudo e em excesso! A diferença entre os que têm fome de saber perante muitos que por nada se interessam... E o trabalho árduo dos que deixando as comodidades se dispõem a "matar a fome" desse saber!
    p.s. Obrigada por nos facultar a fonte.

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