quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Martha Medeiros

A Morte Devagar

"Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante.
Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia.
Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar."

Este texto foi citado, com admiração, por Isabel Seixas, num comentário feito a um post do nosso Embaixador em França, no seu blogue (duas-ou-tres-blogspot.com).
Martha Medeiros é brasileira, vai fazer 50 anos, é jornalista, escritora e poeta/poetisa. Tem uma dezena de livros publicados e colabora regularmente no jornal Zero Hora de Porto Alegre e no O Globo de S. Paulo.
Só recentemente a descobri. Mas neste fim de ano de balanços, nada melhor que dar voz a quem de forma tão inteligente acaba por falar da vida!

HSC

10 comentários:

  1. Grandes verdades que estão nesse texto! Se me permite realço este parágrafo - "Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe."
    Hoje toda a gente se queixa da crise...mas parece-me que pouca gente toma as rédeas da sua vida, e proactivamente procura adquirir novas competências e conhecimentos, ler e estudar. O pior de tudo é ligar a televisão à hora da refeição quando se está em família, deixando esta ocupar o espaço que a conversa devia ocupar à mesa entre pais e filhos.
    Obrigado por nos dar a conhecer este excelente texto, que pode e deve servir para todos reflectirmos e fazer um balanço do ano que agora se encerra.
    Um abraço e um excelente 2001.

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  2. Mas o texto "Morre lentamente", embora aqui apareça modificado, ampliado por assim dizer, não é de Pablo Neruda?
    Lendo só o que aqui está fica-se na dúvida se o texto de Pablo Neruda foi usado intencionalmente ou não. Mas como não há nenhuma referência ao autor...
    (Provavelmente estou fora do contexto e não percebi a intenção,mas não queria ficar na ignorância.)

    Isabel

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  3. Cara HSC,
    E que bela prosa poética a de Martha Medeiros!
    É sempre uma agradável surpresa conhecer novos autores.
    Bem-haja, por esta divulgação.

    ZMS

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  4. Mas... essa poesia é de Pablo Neruda!... :)

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  5. Nem sempre fácil mas sem dúvida uma visão a perseguir na vida... Excelente!

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  6. Um belo texto, este que Isabel Seixas citou e HSC transcreveu.
    P.Rufino

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  7. Caros Isabel e Talvez Te Escreva
    Fiz uma citação e disse de onde a tirara. Como não estou no país não podia ir ao Pablo Neruda que está na minha casa. Mas fui à net e confirmei que a Isabel Sexas citou bem. Se procurarem no Google A Morte Devagar%Martha Medeiros, vão ter a este link (tem um S antes de tudo que não sei o que significa) e lá está o poema inserido numa série de fotos.

    http://www.scribd.com/doc/7097076/A-Morte-Devagar-Martha-Medeiros

    Espero ter esclarecido o quanto posso. Lembro-me de algo parecido de Neruda, mas isso não posso confirmar. A Martha pude e os meus comentadores também podem.

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  8. O poema é da autoria da Martha Medeiros, mas circula erradamente pela internet como sendo de Pablo Neruda.

    Trata-se de mais um caso semelhante aos e-mails com com umas máximas sobre a existência humana atribuídas ao escritor Gabriel García Márquez perante a sua "despedida" da vida.

    São os novos boatos da era tecnológica que tomam proporções à escala mundial.

    Isabel BP

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  9. Obrigada Doutora Helena

    A Martha Medeiros inclusive já clarificou junto da associação percursora de Pablo Neruda a origem da confusão de atribuição àquele grande poeta do Seu(Da Martha) genuíno texto em prosa poética...

    Um abraço amigo
    Com desejo de bom ano de 2011
    Isabel Seixas

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  10. Como é que é possível que isso aconteça...gosto muito dos poemas de Pablo Neruda, e este "dele" até já o passei a amigos como sendo dele.Este e mais dois ou três de outros autores, que me chegaram pela internet.Se calhar também como sendo de quem não são...
    A partir de hoje já só me fio nos livros que tenho!!
    Mas o lado bom desta coisa desagradável, foi ter descoberto Martha Medeiros e algo da sua escrita, que não conhecia e de que gostei muito.
    Cumprimentos
    Isabel

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