domingo, 23 de julho de 2017

A carta de uma mãe de Pedrogão Grande

O Jornal Publico dá, hoje, a conhecer a carta de Nádia Piazza, a mãe da criança de 5 anos que morreu no incêndio de Pedrogão Grande. Quem já perdeu um filho, conhece esta dor. Mas perdê-lo por incapacidade de o salvar de um fogo é, seguramente, uma dor insuportável. É por isso que sinto obrigação de vo-la dar a conhecer. E de vos falar da Associação que entretanto foi criada, para que nada fique no esquecimento. 
Senhor Presidente da República, seja o garante deste movimento de cidadãos e dê-lhes toda a sua atenção. Porque eles vão merecê-la e precisar dela por muito tempo ainda!

CARTA

"Estamos tão cansados, mas não podemos estar. Os mortos não se calam e não nos deixam cansar. Gritam por Justiça! Exigem Mudança!

A Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, o grande, brutal e devastador incêndio que lavrou do dia 17 a 24 de Junho de 2017, nos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra, é um movimento cívico que partiu dos familiares e amigos das vítimas mortais desta tragédia. Uma associação cujo mote é apurar responsabilidades e ajudar a construir um futuro em que tal tragédia e crueldade não volte a acontecer!
Esta é a descrição do que pretendemos ser, com a ajuda de todos e a lembrança de todos aqueles que partiram. Porque hoje somos uma comunidade traumatizada. Uma comunidade sujeita a uma tal brutalidade que não se nos apaga da memória... O cheiro a terra ardida é algo que nos envolve, que nos macilenta e que se entranhou em cada um de nós.
A perda de dezenas de vidas e de forma tão trágica que roça a loucura deixou uma sociedade e todo o seu contexto à volta num luto imposto. A vida acabou ali, naquela estrada para muitas pessoas. Inocentes. E acabou também parte de uma vida para os que ficaram. Os que ficámos, ficámos mais pobres, mais sós, apenas com o alento das memórias, mas com a revolta de toda esta situação. São filhos sem pais. São pais sem filhos... são casas sem gente, é gente sem gente, não é natural!
Olho à volta e as pessoas não se riem, choram sozinhas, acanhadas, não se olham nos olhos, com vergonha pela sua impotência, com medo; o cenário é deprimente e não nos ajuda a superar com dignidade a tragédia. O Inverno não tarda e com ele as ruas despidas de vida. Despidas de ainda mais vida.
Há rancor, ressentimento com o território e com as entidades públicas. O Estado falhou. A Nação não existiu.
Mas não falhou apenas nesta tragédia. O Estado vem falhando ao longo de décadas. O Estado padece de uma cegueira crónica, está enfermo de um tal sentimento de negação de si próprio. Nega o seu estado de país rural, um país orgulhosamente rural e por isso mesmo rico.
Enquanto Estado é um conceito frio, masculinizado, distante, de um ente que impõe tributos e leis aos seus súbditos, um amontoado de entidades supostamente hierarquizadas, com dirigentes supostamente competentes, e que supostamente deveriam cumprir e fazer cumprir um conjunto de leis e regras que se vão aprovando (ou não!) conforme as vontades políticas da estação. Assim se vai governando Portugal. Sem pactos de regime e visão a longo prazo. Vão-se puxando o tapete uns aos outros, não se apercebendo que, por fim, só restam cacos, dor e tristeza para governar.
Nação, por sua vez, é um conceito acolhedor, integrador, feminino, belo, quase maternal, que agrega o seu Povo e o seu Território. É o que dá sentido à reunião das pessoas num determinado território a que chamamos “a nossa terrinha”, “o nosso cantinho a beira-mar plantado”, a proa desta “jangada de pedra”. Portugal.
O Estado falhou nesta tragédia levando consigo o sentimento de pertença de Nação que tínhamos. O Estado não protegeu a sua Nação. Não assegurou o seu Território e com ele o seu Povo...
Fomos vítimas desta ausência insuportável de Estado. Ontem e hoje. Mas não amanhã. Porque já chega de incêndios que ceifam vidas. Incêndios como os de 2003, 2005 e Junho de 2017, e que contabilizam, até a data, 100 vítimas mortais em solo português, não podem voltar a acontecer. É hora de todos dizermos “Basta!”. Este Estado que não quer ver secou uma parte importante da sua Nação, aquela que moveu este país por séculos, o Interior.
A primeira muralha e frente de defesa do País no passado contra as invasões estrangeiras, o celeiro do País em tempo de vacas magras, o emissor de soldados nas guerras ultramarinas, o mercado de mão-de-obra barata em tempos de construção europeia... Quando o Interior e os seus recursos já não eram precisos, substituídos pela oferta de bens e serviços mais baratos, o Povo e o Território do Interior foram abandonados À sua sorte. Emigrem! E assim o fizeram, abandonados à sua sorte.
Não houve solidariedade em tempos de vacas gordas, não houve estratégia para o Território quando os dinheiros dos Fundos Estruturais Europeus chegavam a rodos. Foram anos de esquecimento, de esvaziamento progressivo e consistente das instituições regionais e locais, depois seguiram-se as empresas e, por fim, as pessoas. Sobreviver é preciso.
Foram sucessivas décadas de descaso com o Interior, de negligência com o Território, com a Floresta e a Agricultura. Tendo como consequência a emigração das pessoas em idade ativa, restando uma população envelhecida e empobrecida a exigir cuidados redobrados do pouco Estado que restou e que nos foi esventrado e sobretudo das autarquias locais e misericórdias.
Parecia propositado... o Interior tornou-se terra de ninguém, envergonhado de o ser, abandonado e, assim, por fim, vergado.
Deveríamos dar graças por nos termos tornado a maior região eucaliptizada da Europa... Fomos “agraciados” pela falta de oportunidade! O Território estava a saldos e ninguém quis saber.
O Interior tornou-se um canteiro de ervas daninhas, sem jardineiros — as suas gentes. Um barril de pólvora em que se soma a indústria do fogo institucionalizada e um qualquer ano eleitoral. Os ingredientes ideais para a tempestade perfeita.
A tragédia de 17 a 24 de junho de 2017 estava mais que anunciada. Foi apenas uma questão de tempo... e o tempo não pára! E com ele foram muitas vidas abreviadas. Cedo demais... Cedo demais!
Por ti, meu filho..."
Nádia Piazza, mãe de uma criança de cinco anos que morreu a 17 de Junho de 2017 em Pedrógão Grande


HSC

7 comentários:

  1. Já tinha lido este "murro no estômago" que subscrevo inteiramente porque o problema "governativo" já vem de décadas.

    ResponderEliminar
  2. Uma carta muito bem escrita, por uma mãe
    muito sofrida!
    Uma carta que diz verdades que a todos
    nos deve interrogar.
    Uma carta que o Presidente da República
    deve ler e dar seguimento.
    É triste uma mãe perder o seu filho de
    5 anos, mas é uma mãe coragem de criar
    com outros uma Associação para não fazer
    esquecer, e estar ativa.
    Vou também divulgar esta carta.
    Os meus cumprimentos.
    Irene Alves

    ResponderEliminar
  3. Certamente esta Associação quererá/exigirá que lhe façam conta dos tais 13 milhões que tão generosamente os portugueses doaram!

    ResponderEliminar
  4. Heroínas - são as MÃES que continuam (sobre)vivendo depois de perder um filho ou mais.
    A minha vénia e que Deus as abençõe a todas com muita luz e serenidade.

    Ghost

    ResponderEliminar
  5. Dalma
    Espero que sim. A todos eles e a nós.
    A política não me interessa absolutamente nada. Mas as injustiças põem-me fora de mim.
    Aquela gente, sem casa, sem alma, sem entes queridos, na mais profunda das tristezas continua à espera, sem saber bem, sequer, de quê.
    Enquanto tiver voz não os hei-de abandonar. Porque se perder um filho é uma dor sem nome, perde-los e perder tudo é uma tortura para o resto da vida.
    Que a Associação se faça ouvir. Porque no dia em que não for lá mais um jornalista, eles estarão completamente sós.

    ResponderEliminar