O Jornal Publico dá, hoje, a conhecer a carta de Nádia Piazza, a mãe da criança de 5 anos que morreu no incêndio de Pedrogão Grande. Quem já perdeu um filho, conhece esta dor. Mas perdê-lo por incapacidade de o salvar de um fogo é, seguramente, uma dor insuportável. É por isso que sinto obrigação de vo-la dar a conhecer. E de vos falar da Associação que entretanto foi criada, para que nada fique no esquecimento.
Senhor Presidente da República, seja o garante deste movimento de cidadãos e dê-lhes toda a sua atenção. Porque eles vão merecê-la e precisar dela por muito tempo ainda!
CARTA
"Estamos tão cansados, mas não podemos
estar. Os mortos não se calam e não nos deixam cansar. Gritam por Justiça!
Exigem Mudança!
A Associação das Vítimas do Incêndio de
Pedrógão Grande, o grande, brutal e devastador incêndio que lavrou do dia 17 a
24 de Junho de 2017, nos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e
Castanheira de Pêra, é um movimento cívico que partiu dos familiares e amigos
das vítimas mortais desta tragédia. Uma associação cujo mote é apurar
responsabilidades e ajudar a construir um futuro em que tal tragédia e
crueldade não volte a acontecer!
Esta é a descrição do que pretendemos
ser, com a ajuda de todos e a lembrança de todos aqueles que partiram. Porque
hoje somos uma comunidade traumatizada. Uma comunidade sujeita a uma tal
brutalidade que não se nos apaga da memória... O cheiro a terra ardida é algo
que nos envolve, que nos macilenta e que se entranhou em cada um de nós.
A perda de dezenas de vidas e de forma
tão trágica que roça a loucura deixou uma sociedade e todo o seu contexto à
volta num luto imposto. A vida acabou ali, naquela estrada para muitas pessoas.
Inocentes. E acabou também parte de uma vida para os que ficaram. Os que
ficámos, ficámos mais pobres, mais sós, apenas com o alento das memórias, mas
com a revolta de toda esta situação. São filhos sem pais. São pais sem
filhos... são casas sem gente, é gente sem gente, não é natural!
Olho à volta e as pessoas não se riem,
choram sozinhas, acanhadas, não se olham nos olhos, com vergonha pela sua
impotência, com medo; o cenário é deprimente e não nos ajuda a superar com
dignidade a tragédia. O Inverno não tarda e com ele as ruas despidas de vida.
Despidas de ainda mais vida.
Há rancor, ressentimento com o
território e com as entidades públicas. O Estado falhou. A Nação não existiu.
Mas não falhou apenas nesta tragédia. O
Estado vem falhando ao longo de décadas. O Estado padece de uma cegueira
crónica, está enfermo de um tal sentimento de negação de si próprio. Nega o seu
estado de país rural, um país orgulhosamente rural e por isso mesmo rico.
Enquanto Estado é um conceito frio,
masculinizado, distante, de um ente que impõe tributos e leis aos seus
súbditos, um amontoado de entidades supostamente hierarquizadas, com dirigentes
supostamente competentes, e que supostamente deveriam cumprir e fazer cumprir
um conjunto de leis e regras que se vão aprovando (ou não!) conforme as
vontades políticas da estação. Assim se vai governando Portugal. Sem pactos de
regime e visão a longo prazo. Vão-se puxando o tapete uns aos outros, não se
apercebendo que, por fim, só restam cacos, dor e tristeza para governar.
Nação, por sua vez, é um conceito
acolhedor, integrador, feminino, belo, quase maternal, que agrega o seu Povo e
o seu Território. É o que dá sentido à reunião das pessoas num determinado
território a que chamamos “a nossa terrinha”, “o nosso cantinho a beira-mar
plantado”, a proa desta “jangada de pedra”. Portugal.
O Estado falhou nesta tragédia levando
consigo o sentimento de pertença de Nação que tínhamos. O Estado não protegeu a
sua Nação. Não assegurou o seu Território e com ele o seu Povo...
Fomos vítimas desta ausência
insuportável de Estado. Ontem e hoje. Mas não amanhã. Porque já chega de
incêndios que ceifam vidas. Incêndios como os de 2003, 2005 e Junho de 2017, e
que contabilizam, até a data, 100 vítimas mortais em solo português, não podem
voltar a acontecer. É hora de todos dizermos “Basta!”. Este Estado que não quer
ver secou uma parte importante da sua Nação, aquela que moveu este país por
séculos, o Interior.
A primeira muralha e frente de defesa
do País no passado contra as invasões estrangeiras, o celeiro do País em tempo
de vacas magras, o emissor de soldados nas guerras ultramarinas, o mercado de
mão-de-obra barata em tempos de construção europeia... Quando o Interior e os
seus recursos já não eram precisos, substituídos pela oferta de bens e serviços
mais baratos, o Povo e o Território do Interior foram abandonados À sua sorte.
Emigrem! E assim o fizeram, abandonados à sua sorte.
Não houve solidariedade em tempos de
vacas gordas, não houve estratégia para o Território quando os dinheiros dos
Fundos Estruturais Europeus chegavam a rodos. Foram anos de esquecimento, de
esvaziamento progressivo e consistente das instituições regionais e locais,
depois seguiram-se as empresas e, por fim, as pessoas. Sobreviver é preciso.
Foram sucessivas décadas de descaso com
o Interior, de negligência com o Território, com a Floresta e a Agricultura.
Tendo como consequência a emigração das pessoas em idade ativa, restando uma
população envelhecida e empobrecida a exigir cuidados redobrados do pouco
Estado que restou e que nos foi esventrado e sobretudo das autarquias locais e
misericórdias.
Parecia propositado... o Interior
tornou-se terra de ninguém, envergonhado de o ser, abandonado e, assim, por
fim, vergado.
Deveríamos dar graças por nos termos
tornado a maior região eucaliptizada da Europa... Fomos “agraciados” pela falta
de oportunidade! O Território estava a saldos e ninguém quis saber.
O Interior tornou-se um canteiro de
ervas daninhas, sem jardineiros — as suas gentes. Um barril de pólvora em que
se soma a indústria do fogo institucionalizada e um qualquer ano eleitoral. Os
ingredientes ideais para a tempestade perfeita.
A tragédia de 17 a 24 de junho de 2017
estava mais que anunciada. Foi apenas uma questão de tempo... e o tempo não
pára! E com ele foram muitas vidas abreviadas. Cedo demais... Cedo demais!
Por ti, meu filho..."
Nádia Piazza, mãe de uma criança de
cinco anos que morreu a 17 de Junho de 2017 em Pedrógão Grande
HSC
🌷
ResponderEliminarJá tinha lido este "murro no estômago" que subscrevo inteiramente porque o problema "governativo" já vem de décadas.
ResponderEliminarUma carta muito bem escrita, por uma mãe
ResponderEliminarmuito sofrida!
Uma carta que diz verdades que a todos
nos deve interrogar.
Uma carta que o Presidente da República
deve ler e dar seguimento.
É triste uma mãe perder o seu filho de
5 anos, mas é uma mãe coragem de criar
com outros uma Associação para não fazer
esquecer, e estar ativa.
Vou também divulgar esta carta.
Os meus cumprimentos.
Irene Alves
Certamente esta Associação quererá/exigirá que lhe façam conta dos tais 13 milhões que tão generosamente os portugueses doaram!
ResponderEliminarHeroínas - são as MÃES que continuam (sobre)vivendo depois de perder um filho ou mais.
ResponderEliminarA minha vénia e que Deus as abençõe a todas com muita luz e serenidade.
Ghost
E é mesmo. Sobrevivesse
EliminarDalma
ResponderEliminarEspero que sim. A todos eles e a nós.
A política não me interessa absolutamente nada. Mas as injustiças põem-me fora de mim.
Aquela gente, sem casa, sem alma, sem entes queridos, na mais profunda das tristezas continua à espera, sem saber bem, sequer, de quê.
Enquanto tiver voz não os hei-de abandonar. Porque se perder um filho é uma dor sem nome, perde-los e perder tudo é uma tortura para o resto da vida.
Que a Associação se faça ouvir. Porque no dia em que não for lá mais um jornalista, eles estarão completamente sós.