Confesso que estava receosa do filme ser muito violento, porque Eichmann foi alguém que atravessou a minha infância e simbolizou os delírios hegemónicos da Alemanha. Mas venceu a pressão familiar, a troco do meio bife no Café Império da minha juventude. Cedência contra cedência portanto, ou como dizem os meus colegas de profissão, um caso de win/win.
Gostei imenso da película. Talvez porque me relembrou a importância de "pensar" - tantas vezes esquecida ou mal entendida -, a intransigência, a dureza, enfim, o lado claro escuro da vida.
Hannah Arendt foi uma filósofa que obrigou a rever muito do pensamento da época em que viveu - só muito mais tarde seria devidamente apreciada - e que prova bem como julgar as pessoas fora do contexto em que cresceram e viveram pode ser injusto.
Não se trata apenas do julgamento de Eichmann, nem sequer da incompreensão de que esta mulher foi, durante muito tempo, vitima. Trata-se de algo muito mais profundo, e que pode resumir-se dizendo que se pretendeu, de facto, fazer um julgamento da História.
Um filme a não perder, sobretudo por todos aqueles que, como eu, são fiéis leitores de Arendt. Iria dizer seguidores. Mas seria exagero, porque tenho algumas divergências com o seu pensamento filosófico. Mas isso será matéria de que, um dia, quem sabe, talvez me venha aqui a ocupar.
HSC
Viu? Eu logo disse que ia gostar...
ResponderEliminarBarbara Sukowa ganhou vários prémios com as suas interpretações em filmes de Fassbinder (Lola) e Margarethe von Trotta. Neste filme, obra de Von Trotta, B Sukowa interpreta o papel da filósofa Ana Arendt, que corajosamente se manteve fiel à autonomia do seu pensamento, enfrentando até a desaprovação dos próprios amigos.
ResponderEliminarQuase permanentemente só durante todo o filme, na penumbra onde brilha o seu cigarro, em silêncio com a sua liberdade de pensamento, sendo este como uma luz no meio das trevas.
Ver alguém valorizar e dedicar o seu tempo a pensar é algo de fascinante. O ato de pensar como um valioso bem imaterial, social e pessoal.
Arendt alerta-nos para os perigos de não pensar, que possibilitam a obediência ao mal instituído e regulado burocraticamente, como foi o plano de exterminação de 6 milhões de Judeus.
Arendt ficou admirada durante o julgamento do nazi Eichmann nos anos 60, com a enormidade dos seus crimes e a sua vulgaridade como ser humano.
Ana Harendt diz uma frase no filme que me impressionou- só o bem é paixão acima da média, o mal é no caso de Eichmann duma banalidade medíocre (cito de cor, de core).
ResponderEliminarPensar e tentar compreender o fenómeno da banalização do mal, cuja monstruosidade não está na pessoa, mas sim no sistema, torna-se sempre um tema actual. Já Churchill referia que “todas as grandes coisas são simples. E muitas, podem ser expressas numa só palavra: justiça; liberdade; honra; dever; piedade; esperança”. Eu, acrescentaria outras, mais actuais, poucas mas boas, como: solidariedade, fraternidade, etc. Se, as de raiz mais abstracta fossem formatadas através de modelos exemplares, mais ou menos, sensatos, e que, associadas às outras, mais evidentes, fizessem parte da instrução social escolar, talvez contribuíssemos para um pensamento sistémico que motivasse uma certa erradicação de banalização do mal nas sociedades contemporâneas... Não sei, digo eu!..
ResponderEliminarFrancamente, acho que abusei da sua paciência...
Um abraço para si
Já lhe tinha dito que o filme era espectacular.
ResponderEliminarO que apreciei foi a sobriedade das imagens que não pretendem mais uma vez desmascarar o horror do Holocausto, mas salientar a pequenez e a desumanidade de uma mente limitada e dramaticamente indiferente ao sofrimento alheio.
A ideia de julgar aquele homem na amplitude de toda uma ideologia é segundo Arendt, um erro colossal. É dar demasiada importância a um indivíduo destituído de qualquer traço humano.
A interpretação é excelente também.
Os artigos de Ana Arendt publicados no New Yorker sobre o julgamento de Eichmann, deram origem a um grande escândalo sobretudo entre a comunidade judaica, uma polémica que ainda hoje se mantem.
ResponderEliminarOs ativistas judeus no início da década de 60, viam Eichmann como demoníaco, mas Arendt constata ao assistir às várias sessões do julgamento, que em vez da besta assassina que esperava ver, Eichmann era um homem horrivelmente 'normal', banal, mediano. Não era alguém fora do comum, uma exceção. Existem seres humanos que agem por perversidade, porque retiram prazer da dor que provocam, mas não é da exceção que H.A. fala.
Arendt não pretendeu desculpabilizar o torturador, mas pelo contrário, mostrar como a escala do problema era muito mais funda e grave:
O que é monstruoso é a naturalidade com que a violência é praticada nos sistemas totalitários, autoritários, fundamentalistas, patológicos, através da burocracia e da desumanização, da opressão e do terror. É a monstruosidade instituída.
Cada indivíduo esvaziado da sua capacidade crítica, é apenas uma peça da engrenagem- do topo da pirâmide burocrática, é enviada a ordem, e na base o torturador desempenha a sua tarefa, com métodos (hoje) cada vez mais sofisticados.
Quando Arendt foi confrontada com a acusação de que não amava os judeus, respondeu que nunca tinha amado um povo, um país, um grupo, mas sim o mundo- Amor Mundi.
Um dos seus pensamentos mais interessantes é o de que cada ser quando nasce introduz algo de inteiramente novo no mundo.
Julgar sem considerar o contexto em que as pessoas vivem e crescem poderá não ser o mais correcto, certamente, mas "aceitar" ou "desculpabilizar" só tendo em conta também o contexto em que as pessoas vivem e crescem não é menos correcto ... ambas as formas serão, no meu entender, bastante redutoras.
ResponderEliminarPensar, avaliar, procurar compreender o que levou e motivou as pessoas a determinado comportamento implicará, penso eu, mais do que apenas o contexto, mas também a própria pessoa em si, a sua forma de ser e de estar, as suas ambições e expectativas também.
Cpts,
Cláudia
Quando vi o filme Ana Arendt, na fila atrás duas senhoras conversavam sobre o filme no intervalo, e uma delas dizia 'Ela é muito querida, como ela consegue perdoar Eichmann, ela que também foi perseguida, que também esteve num campo de concentração'.
ResponderEliminarNa verdade a ideia de Arendt é muito mais dura e assustadora: numa sociedade totalitária, o mal deixa de ter um rosto, deixa de se localizar num monstro fora do comum, para se burocratizar, para ser banal, para ser levado a cabo por homens comuns que cumprem ordens sem as questionar.
Para a filósofa, Eichmann não passa de um zé-ninguém, uma fotocópia de tantos como ele, num sistema desumanizado em que, ao perder a capacidade de pensar, perdem a capacidade de distinguir o bem do mal.
Se Margarethe von Trotta tivesse feito um filme mais novelesco, focado na vida amorosa de Arendt com o seu professor, o filósofo M. Heidegger, que viria a aderir ao nazismo, teria provavelmente um público mais vasto.
Não Arendt não era uma querida, era mesmo considerada fria, insensível e arrogante. Mas von Trotta mostra-nos tb o seu lado mais privado, mais humano, sem cair na novela.
Anónimo das 10:52
ResponderEliminarTem razão. As senhoras só perceberam o que o espírito lhes permitiu.
Arendt não esteve sequer num campo de concentração mas num campo de refugiados em França. Este país amigo, passaria depois pela ocupação alemã e virou inimigo. Mas não passou pelos campos do holocausto.
Arendt é de facto intelectualmente arrogante e a paixão por Heidegger é a sua grande fractura...
Tenho uma enorme admiração pelo seu pensamento filosófico, mas a sua superioridade assumida incomoda-me. Ninguém é perfeito!
O pensamento de Ana Harendt tem uma um papel de referência nos debates dos nossos dias, pela sua independência de pensamento, teoria sobre as origens do totalitarismo, importância da conquista da liberdade, do pluralismo, do respeito pelas diferenças, a natureza do mal (só a nossa capacidade de pensar nos permite distinguir o bem do mal). Para AH a política tem como única razão de ser a liberdade, defende o debate político livre e a democracia direta.
ResponderEliminarNão podemos esquecer que foi considerada insensível e arrogante por ter acusado os líderes judeus de terem tido um papel de cumplicidade com os nazis, o que foi na época um grande choque, como podemos ver no filme.
Para AH o número de vítimas foi de dezenas de milhões entre os quais 6 milhões de judeus, vistos na época como párias, foram largos milhões, incluindo quem quer que mostrasse alguma diferença da média, mesmo que vaga- etnias ciganas, negros, homossexuais, sindicalistas e ativistas de esquerda.
Como mostrou na sua obra os totalitarismos abrem uma via para aquilo que de pior existe no ser humano.