sábado, 30 de março de 2013

Da dignidade

Carta aberta ao ministro das Finanças alemão
"O Senhor Ministro afirmou que há países da União Europeia que têm inveja da Alemanha. A primeira observação que quero fazer, Senhor Ministro, é que as relações entre Estados não se regem por sentimentos da natureza que referiu. As relações entre Estados pautam-se por interesses.
Queria dizer-lhe também, Senhor Ministro, que comparar a atitude de alguns Estados a miúdos que na escola têm inveja dos melhores alunos é, no mínimo, ofensivo para milhões de europeus que têm feito sacrifícios brutais nos últimos anos, com redução muito significativa do seu poder de compra, que sofrem com uma recessão económica que já conduziu ao encerramento de muitas empresas, a volumes de desemprego inaceitáveis e a uma perda de esperança no futuro.
E acrescentou o Senhor Ministro: “Os outros países sabem muito bem que assumimos as nossas responsabilidades…”. Fiquei a saber que a nova forma de qualificar o conceito de poder é chamar-lhe responsabilidade!
E disse mais o Senhor Ministro: “Cada um tem de pôr o seu orçamento em ordem, cada um tem de ser economicamente competitivo”. A este respeito gostaria de o informar que já tínhamos percebido, estamos a fazê-lo com muito sacrifício, sem tergiversar e segundo as regras que foram impostas.
Quando o ministro das Finanças do mais poderoso Estado da União Europeia faz afirmações deste jaez, passa a ser um dos responsáveis para que o projeto europeu esteja cada vez mais perto do fim.
Passo a explicar. O grande objetivo do projeto europeu foi garantir a paz na Europa e como escreveu um antigo e muito prestigiado deputado europeu, Francisco Lucas Pires, “… essa paz não foi conquistada pelas armas mas sim através de uma atitude de vontade e inteligência e não como um produto de uma simples necessidade ou automatismo…”. A paz e a prosperidade na Europa só foram possíveis porque no desenvolvimento do projeto político de integração europeia teve-se em conta a grande diversidade de interesses, as diferentes culturas e tradições e os diferentes olhares sobre o mundo. Procurou-se sempre conjugar todas essas variedades, tons e diferenças dos Estados-membros numa matriz de valores comuns.
Esta declaração de Vossa Excelência põe tudo isto em causa, ao apontar o sentimento da inveja como o determinante nas relações entre Estados-membros da União Europeia. Quero dizer-lhe, Senhor Ministro, que o sentimento da inveja anda normalmente associado a uma cultura de confrontação e não tem nada a ver com uma outra cultura, a de cooperação.
Com esta declaração, Vossa Excelência quer de forma subtil remeter para outros Estados a responsabilidade pela confrontação que se anuncia. Essa atitude é revoltante, inaceitável e deve ser denunciada.
A declaração de Vossa Excelência, para além de revelar uma grande ironia, própria dos que se sentem superiores aos outros, não é de todo compatível com a cultura de compromisso que tem sido a matriz essencial da construção do sonho europeu dos últimos 60 anos.
Vossa Excelência, ao expressar-se da forma como o fez, identificando a inveja de outros Estados-membros perante o “sucesso” da Alemanha, está de forma objetiva a contribuir para desvalorizar e até aniquilar todos os progressos feitos na Europa com vista à consolidação da paz e da prosperidade, em liberdade e em solidariedade. Com esta declaração, Vossa Excelência mostra que o espírito europeu para si já não existe.
Eu sei que a unificação alemã veio alterar de forma muito profunda as relações de poder na União Europeia. Mas o que não deveria acontecer é que esse poder acrescido viesse pôr em causa o método comunitário assente na permanente busca de compromissos entre variados e diferentes interesses e que foi adotado com sucesso durante décadas. O caminho que ultimamente vem sendo seguido é o oposto, é errado e terá consequências dramáticas para toda a Europa. Basta ler a história não muito longínqua para o perceber.
Não será boa ideia que as alterações políticas e institucionais necessárias à Europa venham a ser feitas baseadas, quase exclusivamente, nos interesses da Alemanha. Isso seria a negação do espírito europeu. Da mesma forma, também não será do interesse europeu o desenvolvimento de sentimentos anti-Alemanha.
Tenho a perceção de que a distância entre estas duas visões está a aumentar de forma que parece ser cada vez mais rápida e, por isso, são necessários urgentes esforços, visíveis aos olhos da opinião pública, de que a União Europeia só poderá sobreviver se as modificações inadiáveis, especialmente na zona euro, possam garantir que nos próximos anos haverá convergência entre as economias dos diferentes Estados-membros.
As declarações de Vossa Excelência vão no sentido de cavar ainda mais aquele fosso e, por isso, como referiu recentemente Jean-Claude Juncker a uma revista do seu país, os fantasmas da guerra que pensávamos estar definitivamente enterrados, pelos vistos só estão adormecidos. Com esta declaração, Vossa Excelência parece querer despertá-los.
José da Silva Peneda
Presidente do Conselho Económico e Social"


São atitudes destas que se esperam de políticos responsáveis. Silva Peneda merece todo o nosso respeito!


HSC

10 comentários:

  1. a europa tornou-se bruta, selvagem, feroz, a ue como a pensámos é uma lembrança, foi um ideal, tudo terminou, ou está a terminar, estamos a ser testemunhas duma mudança, é mais que evidente, duma transformação e duma transição que não sabemos no que dará, a oposição n-s passou de intercontinental ou hemisferial a inter-europeia, há tensões crescentes nesta europa que parecia cada vez mais ser um mundo de educação, paz, cooperação, mas já não é, etc etc

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  2. Silva Peneda disse aquilo que nunca Passos Coelho (ou Gaspar) seria capaz de dizer, ou mesmo alguma vez lhe ocorreria. O que é curioso é estas palavras virem de alguém do PSD. O que só revela que naquele Partido há gente muito melhor do que Passos Coelho e mais capaz de lidar com esta situação perante as dificuldades (e pressões) externas, como as que se vivem actualmente em Portugal.
    Silva Peneda disse aquilo que muitos pensam – alguns, Políticos, a quem, todavia, lhes falta a coragem para dizer isto mesmo. Ou escrever.
    A Alemanha começa a preocupar-me. Não há muito tempo, após as eleições italianas, um “pateta” (utilizando a linguagem de Francisco Louçã, ontem, no seu comentário semanal na SIC, a propósito do Ministro das Finanças da Holanda e Presidente do Eurogrupo, classificação que subscrevo - inteiramente) de um Ministro alemão disse, a propósito desse resultado, que “dois palhaços” tinham ganho as eleições, ou obtido um resultado excepcional e incompreensível. Ao que se chegou! Um representante de um governo estrangeiro, ainda por cima de um país como a Alemanha, com a relevância economico-política que tem no seio da UE (e com as responsabilidades históricas de 2 Guerras Mundiais, onde se incluiu o Holocausto) a proferir este tipo de declarações é, no mínimo, chocante e constitui uma provocação e um insulto, aos italianos, sem perdão possível. Quem deve opinar sobre esses resultados são os italianos – tão só. A Alemanha da Srª Merkel é uma Alemanha que não serve os interesses europeus e da União Europeia que ajudou a construir.
    Berlim arrisca-se a ser, quem sabe, a principal responsável, quem sabe, do desfazer de um sonho – o de uma Europa Unida, economica e politicamente. A desilusão quanto ao projecto europeu já tem muitos mais “adeptos” do que se imagina. Lá fora e cá dentro. Que não se ficam apenas pela ideia do fim do Euro, ou do seu abandono.
    Tempos difíceis, politicamente delicados, estes que se vivem, por cá e na Europa. Com a Alemanha a deitar lenha na fogueira. Extraordinário!
    Gostei desta carta de Silva Peneda. Um excelente Post, Helena!
    P.Rufino

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  3. Estamos a assistir por parte da Alemanha relativamente ao resto da União europeia a uma atitude que resuscita a velha máxima de Luís XV "aprés moi le déluge".

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  4. Europa para Portugal é a utopia feita real... as consequência são também reais e visíveis demais!
    Mas, é Páscoa tento ter esperança no povo, que é sábio!
    Santa Páscoa!
    Todo o carinho muito amigo,
    lb/zia

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  5. Sinto orgulho em que ainda haja portuguesesassim!

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  6. Partilhei, quando estudante, um apartamento com um alemao que era excelente. Tinhamos um horario minuciosamente escrito com as tarefas individuais.
    Se alguem, por ex, se levantava e limpava a casa de banho suja no dia dele ,voltava a limpa-la. Levou um ano e tal a ver que se fosse mais flexivel ninguem abusava dele , as lides cumpriam-se na mesma e o ambiente tornava-se mais humano e alegre.

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  7. Este PSD devia ser ministro. Tenho acompanhado algumas das coisas que tem escrito e dito e parece uma pessoa esclarecida.

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  8. Admiravel
    Maria Helena Sacadura Cabral.
    Passei aqui, lendo a Carta Aberta ao Ministro Alemão.
    O mundo chora por sentimentos e adormece aos interesses dos mais ricos, mais afamados, dos mais arrogantes, dos pedantes. E assim, a História, vai apresentando cada pensamento.
    Aproveito para desejar-te um dia de domingo: Harmonioso, Alegre e Feliz.
    Um abraço do Brazil.

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  9. Maria (publicamente anónima)
    Drª Helena! Excelente este Post! Como sempre competentíssima nas suas pesquisas.
    Muito interessante esta carta. De um português (não um português qualquer!), para um ministro alemão!
    Importante pensar, analisar e reflectir, tanto o discurso do ministro alemão como as palavras de Silva Peneda, em jeito de recado. Palavras importantes e interessantes, certamente representam o pensamento de muitos portugueses sem voz. É bom que se levantem vozes com atitude, com peso, que mereçam o nosso respeito e a nossa confiança. Ainda há portugueses assim. Esperemos que apareçam mais vozes responsáveis, competentes e capazes de alertar os Senhores que se julgam “donos do mundo”.
    Por aonde andam os princípios fundamentais do projecto europeu tal como foi pensado inicialmente?
    Obrigada por mais esta escolha.
    Maria M

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  10. Silva Peneda é um senhor. E sabe o que diz. Bem podia voltar a ser ministro, isso podia...

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