"Há duas espécies de velhos, os que admiramos por conseguirem avançar nos anos sem perder a elegância e a identidade e os que se degradam, constituindo no seu conjunto uma montra triste, que preferimos ignorar. Infelizmente os que soçobram constituem a maioria, por isso estão em todo o lado, na rua, nos prédios onde habitamos e até dentro das nossas casas. São velhos sem nome (os velhos, quando perdem a identidade, deixam de ter nome e passam a ser apenas "velhos"). Até os que nos estão mais próximos deixam de ser quem foram. Os pais e as mães que sucumbem à doença passam a ser vistos pelos respectivos filhos com olhos de vidro, sem foco. De repente a uma distância enorme, a que vai da vida activa ao mundo frágil e terminal da terceira idade. Quando são por estes lembrados nunca têm o rosto que ostentam mas o antigo, do tempo em que exerciam as suas funções afectivas de acordo com as expectativas.
Senilidade e decrepitude são palavras assustadoras, que cheiram a urina, por isso pensá-las é um exercício que evitamos. Vê-las à nossa frente, com a fisionomia de gente que amamos é uma agressão intolerável. Por isso muitos as fecham em jazigos com médico e serviço de enfermagem permanente.
Em "Amor", Michael Haneke mostra-nos o que acontece às pessoas que perdem o nome. Sempre que sou forçada pela vida ou pela imitação da vida que é o cinema a olhar para onde não quero, lembro-me da inolvidável cena de Malcolm Mcdowell em "Laranja Mecânica", de olhos arreganhados por pinças e preso a uma cadeira a ver cenas intermináveis de sexo para se curar. Neste filme, Haneke também nos obriga à visualização compulsiva da obscenidade que é a perda da autonomia e da dignidade na velhice através do desempenho magistral de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva. Mas a prova mais difícil de "Amor" tem como figura chave a personagem de Isabelle Huppert, que interpreta a filha do casal idoso. Em entrevista recente o realizador austríaco disse que ficou emocionado quando Huppert aceitou este papel, por ser tão pequeno. De facto são escassas as cenas em que a actriz aparece, mas a sua ausência é parte fundamental do enredo. Huppert somos nós. A indisponibilidade, o egoísmo, a imaturidade, a cobardia e a negação são nossas. E quando já de luto se senta sozinha na casa dos pais, é em nós que se instala o vazio.
Em poucas sessões tenho visto a plateia de uma sala de cinema permanecer sentada, em silêncio, até que as luzes se acendem e a ficha técnica chega ao fim. Não por acaso foi o que aconteceu quando fui ver este "Amor" implacável, inesquecível, de Haneke (onde a nossa Rita Blanco desempenha um pequeno papel), o filme mais premiado no Prémios do Cinema Europeu 2012, distinguido com os galardões de melhor filme europeu, melhor actor e melhor actriz e também vencedor da Palma de Ouro em Cannes, na edição deste ano. A não perder."
Quando as palavras dos outros dizem melhor do que as nossas o que
pensamos de alguma coisa, manda a humildade e a inteligência que nos limitemos
a dar-lhes a vez e a voz. É o caso deste texto excelente que pertence à Teresa
Ribeiro e foi postado no Delito de Opinião.
O que aqui se diz é exactamente aquilo que realizador do filme pretendeu
que nós víssemos. E meditássemos. Para nos envergonharmos do modo
como tratamos os "nossos velhos" e àquilo a que, por amor, eles podem ser levados a fazer.
HSC
Estava na sala 14 fica para a próxima... eu fui á 13 ver a Anna karenina/Keira Knightley:
ResponderEliminarADOREI, está TUDO lá, levando em conta que já tinha lido o Tolstoy em português e em inglês.
Cara Helena:
ResponderEliminarVou ver. Obrigado pela indicação.
Raúl.
Não é a primeira vez que me acontece um post seu parecer mesmo ser-me especialmente destinado. De facto, não vi ainda o filme, mas nos últimos dias tenho pensado muito em tudo isto, a propósito da minha mãe e desse dilema entre o querer fazer tudo e mais alguma coisa agora que ela precisa de mim como eu sempre precisei (e preciso) dela e ter aquele sentimento quase de "culpa" por achar que tudo o que faço se calhar é muito pouco em relação ao que ela precisa e merece.
ResponderEliminarAgradeço-lhe por nos ter dado a conhecer este belíssimo texto da Teresa Ribeiro e pela pertinência da reflexão que ele suscita. A ver se me encho de coragem para ir ver o filme...
Um grande beijinho, Helena!
Isabel Mouzinho
que maravilhosa reflexão sobre este magnifico filme que o "amour"!
ResponderEliminarobrigado por nos transmitir tanta sabedoria!
um forte abraço,
lb/zia
Temi ver este filme exactamente por aquilo que este texto descreve... sou filha de um pai mais velho, toda a vida me confrontei com a possibilidade de, ainda demasiado cedo para mim, ter que lidar com a "perda do seu nome", com a sua degradação. Com a perda do MEU pai ainda em vida...
ResponderEliminarFelizmente, não foi isso que aconteceu. Por mais que me tivesse doído a sua partida algo repentina apesar da idade, fiquei feliz por nunca ter perdido a sua identidade e ter conseguido sempre olhar para mim vendo-me realmente, ao contrário do que aconteceu, anos antes, com a minha avó.
Não obstante o sentimento dos filhos, a dor que a velhice dos pais nos causa, há sempre que lembrar o sentimento dos pais, dos "velhos" que um dia não o foram e que se vêem a dada altura dependentes e doentes. E dar-lhes a mão como um dia eles nos deram. E lembrar que, um dia, seremos nós a estar nesse lugar...
Um filme a ver, sem dúvida!
Cara Helena,
ResponderEliminarSubscrevo totalmente.
Os "nossos velhos" valem platina.
Sempre com amizade.
Eu fui ver o filme. Tocou-me profundamente porque o amor é assim: carinhoso, disponível, presente, companheiro, solidário, paciente e louco. Os actos de amor de George e Anna são comoventes,... todos até ao fim! "Amour" exige reflexão a quem o vê, na minha sala também ficámos sentados, quietos e calados, alguns soluçando, mesmo depois de as luzes se acenderem.
ResponderEliminarJean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva comovem de tão sinceros e magestrais.
Obrigada, Helena, pela sugestão!