terça-feira, 24 de março de 2015

Página de um diário (3)

Lisboa, 24 de Março  de 2015-03-24

Sinto-me como se o mundo tivesse desabado todo sobre os meus ombros. Fui vê-los hoje. Ela, a minha cunhada, não me reconheceu, ou dito de outro modo, sabia quem eu era, mas não me localizava na sua vida. Ele, o meu irmão, pese embora não fale, mostra pelo olhar a sua imensa alegria em me ver. E, agarrado a mim, inicia uma longa conversa feita apenas de sons, aos quais tento responder com palavras que se aplicam a todas as conversas. É assim que nos rimos os dois um com o outro, e um do outro.
Escrevo estas linhas com o coração apertado. Há apenas oito meses todos nós festejávamos, em família, o facto de estarmos juntos.
Agora, depois de um AVC nele e de um progressivo Alzheimer nela, tudo mudou na vida de ambos e também na nossa que os sentimos sem reversão, à espera que a espera tenha um fim.
O mais trágico nisto tudo é pensar que há apenas oito meses este homem de 86 anos era uma pessoa com enorme capacidade intelectual, um devorador de livros e de discos, um apreciador daquilo que a vida lhe dava, gozando intensamente a casa e os amigos, esquecido já de uma carreira que o tinha mantido fora do país e de nós, por longos períodos.
Os meus irmãos são uma parte de mim. Sem a qual convivo mal. Assistir, como hoje aconteceu, mais uma vez, à menorização que a incapacidade de falar ou de se mexer lhe traz, dói-me terrivelmente. Mas pensar que, de um momento para o outro, posso mesmo perder este mínimo feito de sons e de abraços, deixa-me muito desamparada!


HSC

7 comentários:

Anónimo disse...

🌷

Miss Smile disse...

A doença e a incapacitação constituem a face mais cruel da vida. É um tempo de vida ensombrado e quase inconcebível que representa a própria negação do futuro. E como é que se vive uma relação sem a perspetiva de futuro? Como é que se vive na antecipação da perda de alguém que tanto amamos? Como é que resistimos à inexorabilidade da passagem do tempo? Incomensuravelmente abalados pela dor fina e aguda que nos corrói por dentro e pelo peso do mundo que suportamos nos ombros, vivemos provavelmente um dia de cada vez. Ou sobrevivemos apenas no desencanto de um presente entrelaçado com o peso de um fim iminente. Desejo-lhe, do fundo coração, muita força e coragem para estes tempos tão difíceis.
Um abraço apertado

Anónimo disse...

Eu tão apegada que sou aos meus, fiquei agora emocionada com a dor da Helena. Será dilacerante, por certo.

Um abraço solidário

Fatima MP disse...

Sem palavras, Helena, porque não há palavras que atenuem essa dor. Apenas um grande, grande abraço, com muito carinho e admiração pelo que em si sempre se revela de compaixão, delicadeza de sentimentos e de alegria, coisas tão raras. Sim, sou sua fan!!
fatima

Anónimo disse...

Coragem neste momento tão doloroso.
Que Deus lhe dê força para vencer esta "batalha". :)

Maria Júlia Sobrinho disse...

Envio-lhe o meu abraço, desejando-lhe o melhor possível num cenário triste e pesado. Vêm à memória todos os momentos bons que já tiveram e são esses que dão a chama para todos os que virão.

Helena Sacadura Cabral disse...

Caros comentadores
Agradeço muito o vosso apoio, mas já aqui expliquei que esta série a que chamei Paginas de um Diário é ficcional, como parte das coisas que escrevo na primeira pessoa.
Não se trata de um diário pessoal - pode, eventualmente, ter num ou noutro texto uma base real - mas isso é o que acontece com todos aqueles que escrevem.