terça-feira, 30 de setembro de 2014

Colateral


As salas de velório têm sempre aquela luz coada, pensavu. Daí que não fosse fácil perceber quem eram os familiares junto ao caixão. Estavam todos vestidos de preto e a viúva só poderia ser uma das duas loiras que mais apertos de mão e beijos na face recebia.
Mas Laura não tinha a certeza. E também não era para apresentar pêsames que ali estava. Apenas queria ver quem era a mulher que havia ficado sem o marido. Sentia-se, hoje, nesse direito. Afinal, durante duas décadas nunca tentara fazê-lo, embora não lhe faltasse a vontade. 
A sala começava a encher-se. Mas ela não arredava pé. Queria mesmo ver quem era a rival. Apesar de nenhuma das loiras ter ar de chorar o defunto, alguma delas devia ser. Estava nestas lucubrações, quando alguém lhe bateu no ombro e perguntou:
- Pode lembrar-me, por favor, o nome da viúva?
- Coralina, respondeu.
- É da família? 
- Não propriamente. Sou colateral.
- Ah! Os meus sentidos pêsames!

HSC

15 comentários:

Um Jeito Manso disse...

A Helena julga que está a ficcionar mas olhe que eu, há uma meia dúzia de anos, presenciei uma coisa do género.

Uma colega minha ficou viúva e eu fui ao velório.

No banco em meia lua frente ao padre, lá estava ela com os filhos, ela chorosa, apoiada pelos filhos, recebendo o amparo das palavras do padre.

Nos bancos da igreja, não apenas muitos colegas nossos como, sobretudo, muitos colegas ou amigos por parte do falecido, gente que não conhecíamos.

Quando o padre terminou, os nossos conhecidos dirigiram-se a ela, que estava prostrada mas estranhamente nervosa e desconcentrada, mais do que seria normal. Tentámos consolá-la mas ela tremia, enervada, e parecia que nos queria era despachar.

E, para minha surpresa, os amigos do morto dirigiram-se todos a uma senhora, de luto, chorosa e inconsolável, que recebia os pêsames, como se também fosse a viúva. Fiquei eu e todos os meus colegas completamente de queixo caído.

Afinal o senhor, que trabalhava durante a semana nos escritórios junto à fábrica, na província, tinha lá uma outra mulher.

Uma cena inimaginável. Saí de lá banzada.

Quando uns dias depois a minha colega voltou ao trabalho, eu estava apreensiva pois nem sabia o que dizer. Afinal não tive que dizer nada, ela fez de conta que não se passava nada, continuou a falar do marido como se tivesse sido um marido exemplar.

Soube depois que ela sabia desse affaire há anos mas nunca aceitou, nem assumiu a sua condição de mulher 'enganada', obrigando-o a continuar a fazer uma vida conjugal de fachada.

Por isso, já vê, Helena: a realidade ultrapassa por vezes a ficção. Mas presumo que também saiba disso.

Um abraço, Helena.

João Menéres disse...

Dado que ontem faleceram duas personalidades, fica a dúvida de quem seria o velório.
Inclino-me para o militar...


Melhores cumprimentos.

Anónimo disse...


Helena,
têm uma história parecida no seu livro " Nós de amor ", creio existirem muitas colaterais, por esse mundo fora!

Carla

Corvo disse...

Pêsames apresentados a quem provavelmente mais lamentava.
Corvo

Helena Sacadura Cabral disse...

UJM
Assisti há anos no velório de um grande médico deste país a uma cena semelhante. E eu era amiga das duas viúvas!
Mas esta pequena história é inteiramente verídica. Passou-se ao meu lado e também eu conhecia as duas "viúvas". É verdade que a Laura, durante 20 anos, se recusou a "ver" a primeira. Ao contrário, esta, sabia tudo da vida da segunda. E por mais que isto seja deprimente, eu acredito que ele gostava sinceramente das duas...
Abraço

Anónimo disse...

Um velho tio-avô meu, já há muito falecido, tinha um hábito divertido, por ocasião dos velórios, que ele considerava uma “tremenda maçada, mas a que não devemos faltar por consideração para com aquele que partiu” que consistia no seguinte. No acesso à capelinha funerária da igreja da Vila onde vivia, antes de lá se chegar tinha que se atravessar um corredor estreito e bastante escuro, sem luz, que desembocava na dita capelinha após uma pequena curva. Aquele nosso tio-avô colocava-se estrategicamente à entrada de fora do corredor, na porta da igreja que levava as pessoas até ao velório, na tal capelina ao fundo do corredor, para os cumprimentos de pêsames da praxe. E, ali, compondo um ar sofredor e triste, dizia a todos os que iam aparecendo e se preparavam para atravessar o estreito e escuro corredor, antes de chegar ao espaço da capelinha: “cuidado com o degrau!” E os pobres incautos lá iam, temendo tropeçar a qualquer momento e acabavam, invariavelmente, por chegar ao velório com um perna para a frente, pé esticado a “apalpar” o terreno, cuidadosamente, olhar no chão, não fosse o dito degrau estar ali à entrada da capelinha. Não estava, pois não existia nenhum degrau. E, apesar do momento ser solene, todos os que já conheciam esta traquinice do tio-avô, bem como as anteriores “vítimas” daquela marotice, não deixavam de sorrir, comentando: “mais um que caiu na partida do Tio João!” Quando faleceu, a grande maioria dos presentes no seu velório, na mesma capelinha, contava e recontava aquela atitude, com largos sorrisos. Viveu uma vida alegre e divertida, tinha um humor danado e fino e o seu funeral foi dos mais divertidos a que se assistiu naquela Vila, embora deixasse uma saudade enorme, pela boa disposição que sempre manifestava e pelo coração grande que possuía. Noutra ocasião, ainda a propósito de enterros, recordo-me de aqui há talvez uma dúzia de anos, eu e minha mulher ter de ir a um e quando lá chegámos, nunca imaginando que ao mesmo tempo se estivessem a realizar lado a lado, embora em salas diferentes na igreja local, dois velórios, dirigimo-nos ao “errado”. E, como sempre sucede, lá cumprimentámos algumas pessoas. Nossas desconhecidas. Passado algum tempo, já meio intrigado, perguntei a minha mulher se conhecia ali alguém. “Que não!”, foi a resposta. “Oh, Diabo, queres ver que nos enganámos no velório?”, exclamei. “O melhor será, com muita descrição, espreitares o morto, a ver se o conhecíamos”, recomendou-me. Lá fui. Não conhecia. Ou, melhor, nunca o conhecera. E “pisgámo-nos” devagarinho, com uns acenos de cabeça. Afinal, o nosso velório era no outro ao lado, de que não nos tínhamos apercebido. E foi uma alegria quando reencontrámos gente conhecida. Até cumprimentei efusivamente os enlutados, o que mereceu uma chamada de atenção de minha mulher, para que eu fosse “menos exuberante”. Foi a primeira vez e única até hoje em que entrei num velório com tanta satisfação, embora com muita pena do falecido. Bom tipo.
P.Rufino

Anónimo disse...

Os europeus fazem ás escondidas o que os africanos e outros povos fazem ás claras.É uma questão cultural.O coração de alguns/algumas é grande demais só para um/uma.
E muito sofre quem não aceita está realidade.

bea disse...

Num dos seus livros Lobo Antunes retrata essa situação, "Eu hei-de amar uma pedra". Que pode ser vivida assim como a Helena descreve, aceitando mesmo quando não se aceita. Ou como o caso - que o escritor em entrevista explicou ser verídico - que faz parte do livro (sendo que num livro deste autor há sempre muita coisa a doer), um amor imenso que existe escondido até na morte. Que existiu mais do que o outro feito de hábito e talvez ternura, filhos, e convívio constante. Naquele livro o que sempre me impressionou foi o silêncio, aquela mulher sem voz activa ou passiva, a quem o amante morre num encontro e até isso lhe traz problema porque oficialmente ela não existe. Foi tão oficial a sua não existência que acabou em psiquiatria. Consumida e insone.

Mas, pronto. Nada. Isto é drama de livro. Romance apenas.

Tenham um bom dia. Com muita música.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=h8TpRnMU09M
José Afonso, Canção de embalar

Bélinha de Cima disse...

O mesmo que poderá vir a acontecer no funeral do Otelo Saraiva de Carvalho...

Anónimo disse...


O caso do Otelo é assumido, todos sabem uns dos outros, estranho modo de vida...

Carla

Anónimo disse...

E o que não se deve rir o dito cujo,a observar as suas duas (?que se saiba!) damas lá do Além...
Amores,quem os não tem?!

Anónimo disse...

Bélinha de Cima e não duvido nada.Então em Angola ...
Ele há "omens" sempre armados.Armados em garranhões...

Helena Sacadura Cabral disse...

João Menéres
Quase morno...

Anónimo disse...

Camaradas gostam de partilhar tudo...até as mulheres dos outros.
Quantos não conheço que vivem vidas duplas.O que me admira é em pleno século XXI ainda se admirarem destas situações que já vêem,úhhh lá lá ...de mil e troca o passo.E muitos/as sabem e compactuam.
Amor? Interesses?Cobardia?Medo?

Anónimo disse...

Digo vêm.
Anó das 18:06