quarta-feira, 14 de maio de 2014

Sem pertença


Conheci na minha vida universitária - e até na profissional - três tipos curiosos de pessoas. Um era constituído pelos "filhos família" que andavam na Universidade e na vida como quem anda numa discoteca, a perder tempo e, eventualmente, a tentar "engatar" umas miúdas. Na minha área, a da economia, a coisa resultava pouco, dada a escassez, à época, de representantes do sexo feminino. A maior parte deles continuaria a existir deste modo, alimentando-se do que a família lhes havia proporcionado.
Outro era composto pelos filhos de uma média burguesia mais ou menos ambiciosa que transmitia aos filhos a necessidade de terem um curso para poderem manter o estatuto social que entendiam dever ser o seu.
Finalmente, o terceiro agrupava os filhos de gente que, tendo origens humildes, se "esganara" a trabalhar para que os seus descendentes entrassem na Universidade e que via no "canudo" o único caminho possível de promoção social.
Foram estes últimos que conheci melhor e que sempre me impressionaram. De facto, quanto mais se "instruíam", mais se afastavam das suas origens, porque os seus mundos se tornavam mais distintos. E, quando por sorte ou por azar, conseguiam ter sucesso na vida profissional, a situação resultava mais complicada, uma vez que já não pertenciam à classe social de onde haviam provindo, mas também percebiam que não pertenciam àquela na qual faziam a sua vida. Sentiam-se, assim, como apátridas sociais, embora só muito raramente o confessassem.
Convivi com dois colegas brilhantes, cuja história pessoal se enquadra naquilo que acabo de descrever e assisti ao quanto dolorosa ela pode ser. Dor que se agrava quando aparecem os filhos que, esses sim, já pertencerão à tal alta burguesia do mundo dos negócios na qual, por causa dos seus pais, eles nasceram e a quem os problemas  de pertença paternos, pouco ou nada dizem.

HSC

12 comentários:

Nadinha de Importante disse...

A educação é fundamental nessa situação para se conseguir transmitir os valores, mas muitos desses pais procuram dar aos filhos, de mão beijada, o que não tiveram. É meu entendimento que estamos como estamos, em termos de valores sociais!!
Por isso, olhamos para o primeiro-ministro - um exemplo perfeito disso- a fazer birras com o Constitucional, como eu fiz uma por uma boneca. Eu levei logo uma palmada e um castigo para aprender!

Helena Pardelinha disse...

Olá Drª Helena!
Antes de mais, desejo que esteja bem! E que amanhã tudo corra como deseja!...Vai correr com certeza!...
Quanto ao que os retrata hoje, revejo-me nesta ultima categoria de pessoas de origem humilde que foi crescendo, á custa do esforço e mérito!...Queria apênas dar nota, do quanto é difícil, manter a simplicidade e geneunidade com que me criaram e cultivo... independentemente do lugar que se ocupa hoje, na tal dita classe média segregadora dos mais simples...confundindo simplicidade, com ingenuinidade e ou burrice.
Tal como disse em tempos, assim se confude, o TER pelo SER. E para mim, o que mais quem conta, é sem dúvida o SER. O que acho é que para se ter, não precisa de se deixar de ser...a Srª è um excelente exemplo disso. Obrigada por nos fazer pensar e refletir.
Beijinhos com muito carinho

Anónimo disse...

Na "mouche" ...


CAL disse...

I

Sinto, de facto, uma clivagem enorme entre o mundo de onde venho, e aquele que acabei por criar para mim. No meu caso, nem posso dizer pertencer a um meio (aquele que seria inerente à instrução e/ou estatuto profissional), por nem sentir manter relações (e relações estreitas) com um número de pessoas que me permita sentir (ainda que levemente) pertencer seja a que classe for. Como, muito bem, diz, apátria social.

Digo-lhe que pode ser, efectiva e profundamente, confrangedor uma situação (aparentemente) tão simples quanto uma reunião de família espoletada pela primeira cominhão do primo, e que propicia a inevitabilidade da partilha (alargada) de termpo (real) que excede a possibilidade de preenchê-lo com as (sacrossantas) frases de circunstância.

Não me refiro à, disparidade de modos à mesa, hábitos alimentares e interesses (que em muitos casos ainda acontece). Refiro-me, principalmente, às lentes através das quais perspectivamos o mundo. E à distância, e sofrimento, que trás, perceber em plena troca de impressões que nos encontramos em pólos tão opostos. Gera frustração. Frustração e desconforto para ambas as partes. Diria que será muito semelhante à situação de cada um dos interlocutores falar um dialecto. Acrescento-lhe o sentimento de quase bizarria gerado por constatação trazida pelos nossos olhos: afinal de contas os traços físicos e o timbre dizem-nos ser o tio/primo/pai 'de sempre', mas simultaneamente, não conhecemos quem temos à nossa frente. Muitas vezes, sinto mesmo isto: não nos conhecemos, só nos reconhecemos pelas tais evidências físicas mais ou menos imutáveis. E o resto... é um imenso vazio.

CAL disse...

II

Continuamos a gostar das nossas pessoas, e creio que continuaremos a gostar sempre, mas ao mesmo tempo, tudo o que alimenta e justifica passar tempo com (exceto o não palpável e que é inerente ao laço sanguíneo, um gostar só porque sim) desapareceu, ou não existe, nem parece ser passível de construção. Trás (ou pode trazer), como dizia, sofrimento para ambas as partes. E, sim, em parte, continuaremos sempre ligados. Mas há dimensões naturais da(s) necessidade(s) humana(s) que deixam de ser supridas pelas referências de sempre. E, sim, inequivocamente, as referâncias de agora podem não estar disponíveis para sê-lo, ou para encontrar 'valor/interesse' em que provêm de um meio tão diferente. Já para não dizer que os autóctones da tal classe social inerente à instrução e/ou estatuto profissional podem muito bem não ser referência que se queira para mais do que a mera polidez de trato (experiências tenebrosas - se não traumáticas, pelo menos cabalmente esclarecedoras quanto à superioridade natural que - demasiados para a minha experiência - exemplares de nomes de família com muitas gerações se reconhecem face aos demais).

Nesta altura, não me preocupa que os meus eventuais filhos não venham a compreender esta minha realidade, preocupa-se (interessa-me), sim, e em bom rigor, que a experiência deles possa ser mais positiva do que a minha, que possam, naturalmente, sentir-se peixe na água, qualquer que seja o aquário em que a mãe e o pai venham a instalar-se. :)

Minha muito querida e cara Helena, obrigada, muito obrigada...!

CAL disse...

Faltou, para mim, a parte mais importante do texto...

antes de I, considere-se o parágrafo que se segue.

Contam-se pelos dedos de uma mão, e sobram dedos, as vezes que comentei as suas publicações. Muitas vezes, a não reacção escrita àquilo que, gentilmente, vai partilhando, acontece, sim, por não desejar repetir, uma e outra vez (sob pena de soar a 'bajulação'), o que me suscita a partilha daquilo que, no fundo, a Helena, é: gosto mesmo muito de si, e estou-lhe mesmo muito agradecida por disponibilizar-se ao mundo desta forma (encontro, não raras vezes, nos afectos que depreendo das suas palavras, na inteligência, elevação e sabedoria que a sua forma de compreender e relacionar-se com Homem e Mundo denota, o colo e os ensinamentos da mãe que me morreu há tantos anos, e isto, minha cara e querida Senhora, é meritório de estima e gratidão eternas).

Hoje, deixo o desabafo de alguém que, não tendo alcançado o brilhantismo - profissional - a que alude, por força, lá está, das oportunidades de instrução/formação proporcionadas pelo trabalho e esforço de pais filhos da antiga 4ª classe, nascidos e criados, em contexto rural, pode diferenciar-se do ponto de partida. Faço parte da primeira geração de licenciados na minha família (materna e paterna).

Helena Sacadura Cabral disse...

CAL
Obrigada pelas suas palavras. O meu texto reflecte as vivências que partilhei com quem viveu histórias semelhantes à sua. Essas pessoas, que cruzaram o meu caminho profissional, foram e são gente que o país conhece. Mas a dor que as acompanhou, essa, o país nem suspeita, olhado-os como ícones da subida, a pulso, na vida.
Essa dor, melhor do que ninguém, eu testemunhei. E é por causa dela que os admiro e escrevi este texto. Ainda bem que ele a tocou!

Anónimo disse...

Em relação ao primeiro grupo, que, menciona, são uns patetas andam por aí com uns modos e linguagem, num fazer de conta que mete dó.

Ao terceiro grupo não faltará um pouco de humildade e agradecimento a quem tanto esforço fez, para "seres alguém na vida, meu filho".

Normalmente o que observo é gente instruida, mas, que não aprendeu o essencial:

Não se sentir complexada...

CAL disse...

Anónimo das 23:10

Por mera curiosidade, e se não lhe for incómodo, como é que classificaria o comportamento de:

- não comer (publicamente) determinado prato porque o mesmo é composto por uma mistura de ingredientes característica do povo (pese embora ser considerada uma iguaria regional);

- não escolher determinado nome (e não me refiro a nomes mais recentes e/ou que resultem da justaposição de nomes) porque é nome de povo;

- não se ter um cão de determinada raça, porque é um cão do povo;

- não se dizer vermelho, mas encarnado, porque o primeiro é o povo que diz (e o mesmo vale para um sem fim de palavras)?

Anónimo disse...

Cara CAL,

Se a autora deste blog me permitir:

Leu com atenção o que escrevi?
Então podemos considerar, que, pertencem ao primeiro grupo?

Mas, está enganada, comem de tudo desde que de borla!

Os nomes, bem, se reparar nas pessoas com mais de sessenta anos (e já estou a exagerar) notará, que, os seus nomes próprios são exactamente os actuais (Pedro, Joaquim, Francisco, Luis, Helena,
Luisa, Isabel...) São os tradicionais portugueses, agora às vezes a imaginação de alguns voa!

Sabe há muita gente, que, ainda não percebeu, mas, povo somos todos nós.

Anónimo das 23.10




CAL disse...

Ao Anónimo das 23:10 de 14 de Maio, e das 19:12 de 15 de Maio,

agradeço, antes de mais, a sua resposta. Ainda que possa não parecer(-lhe) li atentamente, li. :)

De resto, e tendo por base a minha experiência (contacto) pessoal com elementos dos diferentes grupos (classes, ou como se lhe queira chamar) referidos no post que deu origem a todas estas respostas, digo-lhe que, não, não estou enganada. :) [claro que também concordo com o prezado Anónimo, da mesma forma que, acredito, o próprio Anónimo saberá, certamente, ao que me refiro :)]

Gostaria de dizer-lhe que resulta da minha experiência que os comportamentos que refiro sejam característicos, apenas, dos elementos do primeiro grupo, mas, não é o caso.

De resto, sim, sei, sei..! Sei que muita gente ainda não percebeu que, na verdade, somos todos povo (estou em crer que, em muitos casos, nunca se perceberá). Extremada esta questão, e se não por qualquer outro motivo, suspeito que o passar dos anos (no caso de alguns ilustres descendentes de nomes com muitas gerações) eliminou, por completo, a memória dessa origem (relembro, se quisermos levar a análise desta questão ao extremo).

De resto, a fineza de trato igualmente aprimorada durante muitos anos, a leitura de todos os clássicos literários nacionais, franceses, russos ou ingleses, nem sempre conduzem a espíritos, digamos assim, mais esclarecidos e humanos (eventualmente, nem nunca terá sido esse o fim último da leitura).

Quanto aos nomes e apesar da (chamemos-lhe assim) criatividade de alguns, nem me referia a esses nomes. Referia-me a nomes que, mesmo tradicionais, não preenchem requisitos de tal, porque característicos de filhos de sopeira. Sim, sim, povo/sopeiras, enfim, retretes e sanitas, está a ver? :) Mas sim, não conheci, até hoje, uma criança/adolescente/adulta chamada Pureza que fosse filha... do povo. :)

Espero que a utilização dos ícones ":)" possa ser compreendida à luz daquilo que se sabe, não nos conhecendo, temi que algumas frases pudessem ser entendidas num tom que não aquele que efectivamente retrata aquele que está na origem da minha escrita.

Renovo agradecimentos pela sua resposta, que estendo à autora do blogue, que, acredito, relevará o interpelo por mim feito ao prezado Anónimo.

Ana Maria disse...

Teço o tecido,
(Enredado em teias ).
Pensadas a meias.

Teço o tecido,
(POlitico ,funesto
Tudo onde não presto
De maldade urdido

Teço o tecido
(Na frente fingindo
Nas costas ferindo)
De intriga urdido

Teço o tecido
(Da vil perdição
E total sujeição )
De dinheiro urdido

Teço o tecido
(Na miséria real
Eexistência fatal)
De povo urdido

Teço o tecido
(Desprezível futuro
Deixo cair de maduro)
De Pátria urdido

Teço o tecido
(Vontade iníqua
Maldade profícua)
De caráter urdido

Teço o tecido
Com que me mato ,
Matando os demais,
E prostádo nos ais,
Aqui me bato
Na mesquinhez urdido

Autor João Fernandes