terça-feira, 23 de julho de 2013

IPO

"Olho as pessoas à minha volta e sinto-me em casa. Desta vez não é por mim que franqueio o portão, não há hesitação ou angústia que me tolham os passos. Mas será sempre por mim que voltarei. Uma estranha nostalgia faz-me correr a revalidar o cartão, expirado há anos, que comprova a pertença e me dá a ilusão de uma garantia de segurança. De salvação. Quem por cá passa ou mora algum tempo sabe do que falo: fica-se íntimo, solidário, cúmplice de uma espécie de partilha desesperada que nos une para o resto da vida, valha esse prazo o que valer. Já quase não há caras familiares mas todas as caras são demasiado familiares. É meu pai o velho rabugento que mede forças com a cadeira de rodas, zangado com o mundo. É minha irmã a mulher magra, ainda coquette, que olha furtivamente em volta e ajeita a peruca loira, na esperança de que passe por cabelo verdadeiro. É minha filha a menina de olhar triste que brinca à sombra de uma árvore, lenço de cores berrantes amarrado a cobrir a ausência dos caracóis sedosos. Também eu já caminhei sem destino por estas ruas, sufocando nas entranhas um medo irracional. O maior pesadelo não é a dor física, é o terror. Também a mim já pareceram hostis estes muros, inóspitos estes bancos de jardim. Já fui aquela mulher que vejo agora no bar, agarrada à chávena de café como ao último e supremo prazer a que tem direito. Já me aturdi com a vozearia dos lamentos nas salas de espera. Para calá-los já fui bobo da corte, com graças estafadas para exorcizar fantasmas e arrancar sorrisos a quem se sente no corredor da morte, transido pelo medo e pela dor.  Já deixei lágrimas, suspiros e sorrisos nestes corredores, primeiro sombrios, depois esperançosos, finalmente libertadores. O tempo é sábio, esbate as mágoas e deixa-nos só as boas memórias. Foi aqui que aprendi a ler nas entrelinhas, a interpretar olhares mais do que palavras, a fintar as trevas, a saber esperar. Foi aqui que encontrei a maior condensação de humanidade que alguma vez me foi dado conhecer. Foi aqui que me questionei sobre o sentido da vida, o sentido da morte, e foi aqui que olhei ambas de frente. Estas paredes puseram-me à prova e revelaram-me o melhor de mim. Como posso sentir por elas alguma coisa que não seja gratidão?"

(Post "roubado" à Ana Vidal no blogue Delito de Opinião)

A Ana Vidal não carece de apresentação. Este texto, notável, define a admirável mulher que ela é. Sorte a minha que tenho tais amigas. 
As guerras políticas ao lado de problemas destes são de uma insignificante dimensão!

HSC



19 comentários:

Teresa Peralta disse...


Helena, subscrevo em absoluto as suas palavras e felicito-a por contar com amizades como estas.
Muito obrigada pela partilha.

ana v. disse...

Admirável és tu, que és uma luz. E a sorte é minha.
Um grande beijo, minha querida.

Naná disse...

Fiquei sem palavras ao ler este texto... lamentavelmente essas paredes encerraram o terror da minha mãe, o terror de partir (como partiu) sem me ver adulta...

Ainda não fiz as pazes com essas paredes...

Anónimo disse...

Este belissimo texto comoveu-me imenso.
Tanto o cancro como alguns dos tratamentos brutais existentes arrepiam-me. Resta-me apenas rezar por todos sempre que passo perto de um hospital.
L.L.

Alcipe disse...

Gosto muito deste texto. Escrever e ler é isso: é partilhar uma experiência como se fosse nossa. Não sei quem é Ana Vidal, mas fiquei a gostar dela.

Helena Sacadura Cabral disse...

Caro Alcipe
Ana Vidal nasce em Lisboa, a 11 de Fevereiro de 1957. Estuda Marketing, Publicidade e Relações Públicas. A sua actividade profissional tem-se desenvolvido em diversas áreas, todas ligadas à Comunicação: jornalismo, copywriting, assessoria de imprensa e escrita criativa. Tem colaborado com diversas publicações, sobretudo na área da crónica. Nos últimos anos tem-se dedicado a projectos culturais no âmbito da lusofonia. É ainda guionista e letrista, com diversas obras musicadas e gravadas. Livros publicados: Seda e aço (poesia – DG Edições, 2005), A poesia é para comer (antologia poética 1ª ed. - DG Edições, 2006), Gente do Sul (contos - DG Edições, 2007), A poesia é para comer (2ª ed. - Babel, 2011). É membro da Sociedade Portuguesa de Autores - SPA, do P.E.N. Clube Português e do Cacau Clube de Portugal.
Além deste curtíssimo CV é uma pessoa muito, muito especial. Um tesouro, direi!

Isabel Mouzinho disse...

Sem dúvida, Helena!
Já conhecia o texto, do DO, mas é sempre bom estas chamadas de atenção para o que verdadeiramente conta. Porque às vezes andamos distraídos demais.

Obrigada e um beijinho às duas!
Isabel Mouzinho

Alcipe disse...

Com tanta coisa publicada, eu devia conhece-la. Muito bem, vou fixar o nome. Muito obrigado por me dar a conhecer tão belo texto.

Marta disse...

Um recorte muito sensível daquilo porque passam tantos de nós, a incerteza, a dor e o momento fazem de cada um a possibilidade de um todo e realmente as pseudocrises são apenas caprichos do universo perante aquilo que nos torna verdadeiramente humanos. Grata a Helena e à Ana

Paulo Abreu e Lima disse...

Comoventes tributos. O da Ana ao fantástico IPO e o da Helena à Amiga. Do pouco que conheço da Ana Vidal, realço a graça, a inteligência e a simpatia. Tudo raro por este país.

Beijinhos às duas.

Mª Fernanda disse...

Por vezes penso se não será o medo de fazer parte do caudal diário de «olhares parados pelo medo» que me leva há 26 anos a ser voluntária daquela casa. Creia que aos 81 anos continuo a trazer para a minha vida exemplos de vida que me obrigam a continuar a tentar algum brilho nesses olhos.
Obrigada pelo texto que não conhecia Mª Fernanda

Tété disse...

Querida Helena,
Tudo bem descrito. Do melhor que pode interiorizar quem por lá já passou, e ainda passa apenas para rotinas, graças a Deus. Não foi dos mais graves, mas chegou para ajustar contas com a vida e, tal como diz Ana Vidal: "foi aqui que me questionei sobre o sentido da vida, o sentido da morte, e foi aqui que olhei ambas de frente" e também tal como diz a Helena muitas vezes, tento dar valor ao que é realmente importante e já consigo passar um pouco mais por cima do que não é essencial e a que eu tantas vezes dava demasiada importância.
Mais um agradecimento pela partilha que tanto nos ajuda a seguir em frente.
Grande abraço
Teresa

carolina disse...

é tão bom sermos parte desta raça humana

mmm´s disse...

Belíssimo texto o que partilha e que encerra uma visão otimista da vida "perdida" nas paredes de um hospital que nos dá o amargo sabor dos limites temporais.
Digo "amargo" porque as memórias que guardo daquele lugar, mas que quero muitas vezes recalcar, são demasiado dolorosas...aí vi alguém definhar até ao seu limite e esse fantasma é difícil de combater.
A imagem que temos das coisas é sempre o resultado das nossa vivências, por isso a imagem que me assalta o espírito quando falo, leio ou me lembro do IPO é de medo...
com todo o meu respeito, consideração e agradecimento a todos os que trabalham nesta instituição.
http://www.lavarcabecas.blogspot.pt/

Fatyly disse...

Já o tinha lido, mas foi muito bom reler.
Também apoiei uma amiga e ajudei-a a fazer as pazes com as paredes do IPO...aquando a doença e morte da sua filha com 5 anos.
Crianças inocentes e tanto sofrimento meu Deus...mas no meio de um oceano de dor...ver e sentir que são elas que nos dão forças...não consigo entender esta dualidade.

Um abraço às duas

zia disse...

Palavras sentidas como sentida é a dor e lembrança de quem tão bem as ditou.
O Cancro é uma palavra já de si cheia de dor, angústia e terror do desconhecido e principalmente da morte!
IPO significa essa doença que não predoa e a ninguém é indiferente.
Ontem visitava uma amiga que me disse estou à espera da morte mas tenho medo dela. São palavras sentidas por quem nada já pode esperar da vida, mas ficamos sem resposta perante a dura realidade e até visível nesta situação. Tudo se dilue perante a realidade do que termina! E depois o que haverá?... se houver?!... o inevitável cria o medo... sentimento que bate com força e também não perdoa ninguém, apesar de a maior parte do tempo abstrairmos e o evitarmos a sua presença!...
Um forte abraço,
lb/zia

Anónimo disse...

Belo texto!Muitas pessoas quando se fala no IPO ficam aterrorizadas.
Talvez seja estranho para muitos o que vou dizer, mas desde há 1 ano que frequento o IPO a que chamo na brincadeira de SPA, que quando lá entro sinto-me bem talvez porque o meu caso teve um desfecho feliz(pelo menos para já).Quando lá entro esqueço-me do mundo cá fora...lá estamos todos no mesmo patamar,temos mais noção da Vida e da Morte, lá interagimos muito mais uns com os outros....é outro Mundo que muitas pessoas deveriam conhecer para não reclamarem tanto da vida.Neste momento o IPO é a minha 2ª casa

Anónimo disse...

Sinhora Dr.ª Helena,
aqui é cacimbo,está fresco,e agora é hora de tomar o meu chá príncipe,dedicar-me á minha música e ás minhas leituras,pois das minhas flores já cuidei por hoje bem cedo.

Quero deixar aqui uma chávena deste delicioso chá,um bouquet de jarros e gypsofila e um filme - A borboleta azul - com carinho a todos os que enfrentaram ou estão a enfrentar uma estadia no IPO.

Se eu pudesse dava cor ás paredes do mesmo e plantaria flores em todo o jardim.
Se eu pudesse,colocava um espanta espíritos em cada quarto.
Se eu pudesse enviava uma caixinha de música a cada paciente.
Se eu pudesse,todos os dias receberiam uma flor do meu jardim secreto.
Se eu pudesse faria magia e todos sorririam...
Se eu pudesse...
Mas,posso dizer,"Estamos Juntos" ou seja,Não estão sós...Deus,os Abençõe.
Jardineiro de Angola
Matumbo Feliz Kifala

Isabel Seixas disse...

Há sempre quem consiga captar as emoções sentidas na doença e a sua expressão na resposta humana , também gostei imenso do post.