domingo, 3 de março de 2013

Quem me dera entender...

O texto que se segue foi-me enviado como sendo da autoria de Teolinda Gersão. Escritora, Professora Catedrática aposentada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Te-lo-á escrito depois de ajudar os netos a estudar Português.
"Redacção - Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas
a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português
são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a
mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano
passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o
complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do
sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do
sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma
característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus,
a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e
agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo,
lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o
desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a
funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não
é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a
complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos
directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há
verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser
instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento
prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas
sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e
outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do
tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante
possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções
coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão
a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram,
”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de
um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado
seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase
declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de
polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a
janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o
sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que
aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço? A professora
também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou coisas erradas,
mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da
gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado.
Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem
chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo
ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser
cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que
me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o
que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com
valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do
modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia,
meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e
interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto,
prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e
implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário
inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos
bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para
esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a
mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6
letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.) Mas eu estou farto.
Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles,
excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às
vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam
duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros
desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser
por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já
não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes
até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias
de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber
o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e
inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros,
detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com
um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a
escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou
ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve
redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa
nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de
superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos
pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e
julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do
tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos.
Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos
trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não
sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a
setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está
nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do
sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática" 

Riem-se? Não deviam. Que o diga quem tem filhos ou netos nesta situação...

HSC

10 comentários:

rmg disse...


Pois não me rio , não .
Mesmo nada .
Tenho netos no liceu e dá-me é vontade de chorar cada vez que penso que podem ficar pelo caminho "cabeças" brilhantes só porque não conseguem aprender tanta patetice .

RuiMG

Teresa Peralta disse...


Ri sim.. Para dizer a verdade, chorei a rir!...
Não fazia a mínima ideia da existência de tão grandes transformações nas matérias escolares de Português, pois, as minhas filhas já estão adultas e ainda sem filhos. Haja paciência, para tanta mudança experimental... Já há alguns anos que vivemos uma realidade escolar absurda, baseada na atitude de que, para mostrar trabalho é preciso mudar, quase sempre para pior... E, assim vamos, de pior em pior...
Um grande abraço

Isabel Mouzinho disse...

Este é um assunto que me põe "doente", a mim que sou professora de Português e o sofro na pele, mais ou menos, isto é: neste momento estou no MEC e não lecciono, mas confronto-me com isto nas explicações e fico doida como o ensino da língua vai passando cada vez mais ao lado do essencial, que devia ser apenas isto: pensar, ler e escrever! E confunde-me que ninguém se revolte e que se fale tanto no AO e tão pouco nisto, que é ainda muito mais grave. :(((

Enfim...
Obrigada por trazer o assunto à luz. Também já o fiz. Mas é pouco...
Beijinho
Isabel Mouzinho

zia disse...

É triste e um verdadeiro desastre, mas é apenas a realidade do ensino de português no nosso país!
Os alunos aprendem a não gostar da sua própria língua. Os professores,na sua maioria vêm de fábricas de docentes e o resultado está à vista!
Um abraço,
lb/zia

Dalma disse...

Esta crónica já saiu o ano passado no Público, penso que antes de acabar o ano letivo. Outro começou e que está já a acabar dentro de três meses!Tanto quanto sei a tal"nova gramática" continua a dar que fazer a alunos e professores! Estava eu ainda a dar aulas quando se começou a forjar... as minhas colegas da especialidade andavam arrepiadas... Mas ao que se dizia as elaboradoras da mesma eram eminências das nossas universidades! Acredito sinceramente que muitas das minhas colegas, e sem ofensa para elas, terão já dificuldade, depois de mais de 20 anos a usar a antiga terminologia, em conseguir facilmente troca-la pela moderna!Porque ao que me tem sido dito basicamente é isso, ou estarei enganada?

patricio branco disse...

as coisas devem ter mudado tanto desde que estudei a gramática que não consigo perceber boa parte deste texto de teolinda gersão, não pela escrita que é clarinha, mas pela nova nomenclatura gramatical que enuncia e exemplifica; mas pode ser uma oportunidade para dar uma vista de olhos pela nova gramática, por curiosidade apenas, não para aprender, chumbaria num teste...

Anónimo disse...

eh eh eh
e o modo como estudavamos os Lusiadas num passado do qual ainda me lembro era deveras interessante? A ilha dos prazeres, que nem saia nos exames, safava-se mas o resto ? uma estopada!

Alain Demoustier disse...

lindo, e como disse há pouco um "douto" governante, . verá-se, e porque não ?
alain+++

Anónimo disse...


Como eu a entendo,tenho uma filha no 8º Ano e tem-se queixado bastante da gramática.
Não consigo compreender como é que se faz isto á nossa lingua,quando os outros países deixaram cair o acordo.

Isabel Tomás

MAR disse...

Isto é uma aberração... Perdoem-me a expressão mas assassinamos das coisas mais importantes da nossa cultura: a nossa lingua...