domingo, 15 de janeiro de 2012

Naufragar é preciso?’


"Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português é esse?
Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?
A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por vândalos extra-terrestres que decidiram unilateralmente como devem escrever os portugueses.
Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele: nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do Brasil.
Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos quadros.
Questão de educação.
Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma declaração de princípios: “Por decisão do autor, o texto está escrito de acordo com a antiga ortografia”.
A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo com as novas regras. As crônicas e os textos de opinião, na sua maioria, seguem as regras antigas. E depois existem zonas cinzentas, onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.
A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a língua.
Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para todos os lados. Como foi isso possível?
Foi possível por uma mistura de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular.
Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.
Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as consoantes mudas de certas palavras (“ação”, “ótimo” etc.). E respeito porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermuda e se apaixonou pela garota de Ipanema.
Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração prática.
Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo as vogais que as antecedem. O “c” de “acção” e o “p” de “óptimo” sinalizam uma correta pronúncia.
A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxônicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de partilhar uma língua passa pela sua literatura.
Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.
Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses alfabetizados que sentem “desconforto” por não poderem comprar, em São Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países a preços civilizados.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico, onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos vendeu livros portugueses a leitores brasileiros.
De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?"

O texto que acabaram de ler em itálico é de autoria de João Pereira Coutinho, escritor português e foi publicado na última terça feira na Folha de S. Paulo. Permito-me reproduzi-lo porque ele é o retrato do que penso a este respeito!

HSC

19 comentários:

margarida disse...

Subscrevo!
Além do mais, a foto está um mimo!
Que fofo!!
Vou levá-lo e ao protesto.

Raúl Mesquita disse...

Já conhecia o artigo - agora é tudo tão rápido… assusta! E concordo com ele. Bem escrito e sensato.

Raúl.

Anónimo disse...

Assino por baixo!
P.Rufino

Traçados sobre nós disse...

Cara Dra Helena:
Estou de acordo. Penso que está aqui a ideia (já terá passado?) da "maçã" normalizada. Por outro lado, há coisas que se mudam sem ter de as mudar e outras que não se mudam com tanta urgência de as alterar…
J. Rodrigues Dias

Alda Silvestre II disse...

Perfeito retrato!
Custa-me sempre a deixar para trás o que está velho e em desuso sem lhe atribuir um sentido ou um lugar especial...
Ainda não consegui e não sei se vou conseguir mudar a forma como escrevo - de cada vez que o tento fazer, sinto sempre como se estivesse a abandonar ou enterrar algo que ainda considero precioso!
Fico sempre mais feliz quando encontro afinidades.

Meu_nome_Mulher disse...

Que dizer ?!
Já nos tiraram a dignidade de ser português, já nos "colonizaram", já
nos "rentabilizam" como "lixo".
Qualquer dia acordamos com a nossa bandeira com outras cores, e o hino nacional, com outro teor e outra melodia.
Fernando Pessoa, se pudesse ler algo escrito nos dias de hoje morreria de susto.
De "fato" (ou de terno) não percebo
bem mas, haja Deus, quem descobriu
o Brasil e levou a lingua lusa para lá fomos nós ou terá sido o contrário ?
Conseguem "baralhar-me" e eu que
até era boa aluna a história.
No mínimo respeite-se a ortografia de cada País e, não nos imponham a
obrigatoriedade de (salve seja, porque a mim ninguem me impõe o que não quero, dentro da minha liberdade pessoal), escrever de um modo com o qual não concordamos.
Deixo aqui o meu parecer, para que
possa ser de "facto", motivo para o
"acto" de uma leitura "objectiva".
Um abraço e parabéns pelo excelente
texto.
PS: Perdoem-me algum erro mas, já
coloco em dúvida a minha capacidade
de escrita, em bom português.

Anónimo disse...

Touché.
A excelência das palavras em forma de comentário.
M

Blondewithaphd disse...

Absolutamente simples de genial!

HCS disse...

Os meus parabéns pelo excelente texto! Não imaginam a minha revolta...sou obrigada, repito, obrigada a escrever com o acordo/ "desacordo" ortográfico, com o qual não concordo e não aceito, mas a minha atividade profissional (professora)assim exige!
Ainda tenho esperança de voltar a escrever como " antigamente"! Agora, estamos todos cheios de dúvidas que ninguém esclarece...

João disse...

CARA DRª HELENA,

A língua não deve ser estática. É importante que seja um ACTIVO E ACTUALIZADO instrumento de comunicação dos falantes. Ao quase UNIFORMIZAR estamos a adaptar alguns "signos" por forma a rentabilizar a língua: a torná-la mais acessível em relação ao TODO.Sou a favor do Acordo.

Concordo no alerta da MISTURA, quase caos actual que se observa, porque o Acordo devia entrar em simultâneo para TODOS no mesmo dia.

Urge reclamar a adopção imediata do Acordo para evitar este panorama "desconfortante".

Bem observada e pertinente a questão do(s) mercado(s) do livro entre Portugal e Brasil:incompreensível.

Aceite os cumprimentos de um
Coimbrinha.
Janeiro,19

patricio branco disse...

magnifico texto, cheio de verdades e bom senso.
A etimologia das palavras contem de facto a paternidade, a história e o dna dos vocábulos. São menos bonitas se as descaracterizamos por decreto.

George Sand disse...

Sempre em português, dos dois lados do oceano, nos entendemos.
Agora o que está a acontecer com este disparate, é que a boa literatura brasileira está a ser rejeitada em Portugal.
Um disparate que em vez de aproximar, afasta.

Anónimo disse...

Cara dra. Helena, a Velha Senhora mandou-me mandar-lhe isto:

jovem helena ex(?)-amiga
(leixou-me mal no tim tim)
que o seu amigo consiga
scribere lá em latim

ou portugeese de quimhentos
de quando o brasil achaamos
ou o de mil noueçētos
gallaico que acá gaanhaamos

ou d'acordo cõo acordo
de mil novecentos onze
ou outro que nam recordo
quiçay da ydade do bronze

o que mais me delicia
na crônica desse escriptor
é a correta ousadia
de ser lá e/ou cá traidor

escreva quem escrever
a exemplo de pessoa
cada qual como entender
o dogmatismo é que enjoa

helena jovem querida
acordos quantos vivi
ai na puta desta vida
que em breve me finda a mi.

Helena Sacadura Cabral disse...

Velha Senhora e amiga
Tantos acordos vivi que já não sei mais que latim.
Nenhum deles foi eficaz. Já nem sei com escrever cinquenta ou cincoenta, quasi ou quase, práctica ou prática, quiz ou quis...
Tudo esta grafia na minha vida, que sabeis que não é longa.
Gosto do Camões no original. Que fazer Senhora minha?!

Anónimo disse...

Cara dra. Helena
Diz-me que escreva a Velha Senhora, entre dois copos e dois palavrões:

gostai que eu também gosto amiga jov'helena
e em guerra não entreis se a guerra for pequena
deixai coisas pequenas que é grande o país
amai como eu amei com amor sede feliz.

Anónimo disse...

Cara Dra HSC
A Velha Senhora apreciou o seu comentário e, entre dois copos e dois palavrões suaves, respondeu sorrindo à sua questão sobre Camões no original:

gostai que eu tambem gosto amiga helena
& em guerra nam entreis se ella he pequena
pequeno he vil tam grande he o país
amai como eu amei sede feliz.

Insiste agora a Senhora em querer saber se a rimalhice dela aí chegou e eu, que a enviei, ou tentei enviar, através de portátil, não sei que lhe diga.

Helena Sacadura Cabral disse...

Estimada Velha Senhora
Haveis, um dia, de entender minhas pequenas guerras. Que são tornadas grandes pelo preito e amor que dedico à nossa língua. E, se para tal garantir, tiver de voltar a escrever pharmácia, crede, Senhora minha, que o farei com prazer...

Anónimo disse...

Cara HSC
Os velhos são teimosos e a Velha Senhora abusa...
(Rimalhou e, em atenção para com a sua amiga, 'obrigou-me' a transcrever a 1ª. 'oitava' no português dos Lusíadas, e a última no do Livro do Desassossego, alegando que não conseguia sozinha. Está cada vez mais pitosga, coitada):

se proua de amor aa lingoa
he o ser contra hum acordo
sobre o modo de escreuela
a exemplo de pessôa,
portugal não està aa mingoa,
(demais ateh leva a bordo)
de genios que tratam della
c'um tal graça moura aa proa

nem a exemplo é de pessoa
mas de bernardo soares
e às vezes quando um entoa
o outro lhe faz esgares

minha patria é o 'portuguez'
e a 'syntaxe' a 'portuguesa',
'phrase escripta' e 'orthopraphia
sem ipsilon, como o escarro'...
soares por uma vez
com 'rhetoricas' certeza,
'grammatica' e 'orthodoxia'?
ou é com pessoa que esbarro?

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhora Minha
Velhos são os trapos.
E ve-de como são belos os versos que haveis mandado transcrever-me.

Ah! Caro Alcipe o que vos salva é a qualidade, a ironia, o senso do humor!